Impressões sobre filmes, óperas, espetáculos teatrais e afins.
quarta-feira, 18 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 8
terça-feira, 17 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 7
segunda-feira, 16 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 6
domingo, 15 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 5
Dia 5, quarta-feira, 11 de outubro
Chegamos na metade da Giornate. O programa do dia (com cerca de 50’ de duração) é composto pela exibição de um conjunto de filmes britânicos preservados pela Filmoteca da Catalunha nos primeiros quinze anos da cinematografia: “Early British films from the Filmoteca di Catalunya, 1897-1909”. O acompanhamento musical é de John Sweeney.
Estamos aqui diante de um medium que se descobria e explorava todas as suas inúmeras potencialidades; na égide do “cinema de atrações”, que tanto fascínio despertou desde o público frequentador dos entretenimentos disponíveis nos maiores ou menores centros urbanos, até uma variada sorte de literatos do redor do mundo. Num diapasão dramático, em 1896, o escritor soviético Maxim Gorky refere-se a este cinema como o reino das sombras, lugar sem som e sem cor, habitado por espectros silenciosos e moventes (trecho mais longo desta bela crônica encontra-se aqui).
Um ano mais tarde, o cronista carioca Figueiredo Coimbra apreende este mundo com mais deleite. Encenando uma conversa de um jovem casal que assiste a uma sessão do “Animatógrafo Super Lumière”, no centro da cidade, ele procura destacar pelo viés do humor o que faltaria a este novo entretenimento:
— Viste bem essa rua de Londres?
— Vi!... É uma fotografia. Mas notei pouca animação, apesar das carruagens.
— Havia mais povo do outro lado.
— Que lado?
— O lado que se não via.
— Eu tinha desejo de ir lá, quando de repente a rua acabou.
— Foi um relâmpago, mas bastou, filhinha, para se poder calcular o que é Londres. Uma grande cidade, uma cidade enorme...*
Animatógrafo Super-Lumière, A Notícia. Rio de Janeiro, p. 4, 11-12 dez. 1897. |
Ao meter-se no meio dos acontecimentos, o este cinema recupera uma premência que é aquela da modernidade. Mais que isso, mostra que, embora seja um espetáculo que se venda muitas vezes dentro dos recintos teatrais, supera o teatro, ao sinalizar ao público a existência de um fora de campo. O cinema apontava para a existência daquilo que não podia ser visto. O objeto que fugia das vistas do público denotava a dimensão do mundo de modo muito mais contundente do que o teatro fizera até então.
Os primeiros anos da década de 1890 viram o nascimento de experimentos voltados a dar moção à imagem fotográfica, dentre os quais se incluem o Kinetoscópio de Thomas Edison e o Cinematógrafo dos Irmãos Lumière. O inventor inglês Robert W. Paul é outro desses homens. Seu “Animatógrafo” percorreu o mundo – embora o dispositivo comentado por Figueiredo Coimbra em 1897 denomine-se “Animatógrafo Super-Lumière”, provavelmente tratava-se de um exemplar do aparelho concebido por Paul.
O escopo temático dos registros de Paul assemelhava-se bastante àqueles colhidos pelos irmãos Lumière, mais conhecidos do público, e sinalizavam, como apontei acima, para uma série de caminhos: sketches cômicas, trucagens, phantom rides – cenas tomadas da frente dos veículos, que furavam o burburinho urbano –, desfiles e demais acontecimentos do dia a dia, panorâmicas de sítios históricos (a exemplo de Veneza) ou, ainda, de longas travessias de trem, a tomarem o cinema como o veículo de uma viagem sem sair do lugar.
* Fonte: F. C. (pseud. de Figueiredo Coimbra). Diálogos. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 1, 11-12 dez. 1897.
sábado, 14 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 4
O programa do quarto dia da Giornate é exclusivamente por “Rivalen” (“The Miracle of Tomorrow”, Harry Piel, 1923), com acompanhamento musical de Gabriel Thibaudeau.
Segure-se, público, para conhecer Harry Piel agora de corpo e espírito, já que ele não apenas dirige, mas protagoniza o estonteante longa alemão “Rivalen”, segundo de uma trilogia. Aqui, as aventuras das duas primeiras obras apresentadas no primeiro programa voltado ao artista, dois dias atrás, multiplicam-se e ganham estofo simbólico.
Os contornos da trama são enformados pelo gênero filme de aventura. Aqui, no entanto, o entrecho romântico ganha urgência. Piel mal esconde a associação entre a sua persona cinematográfica e o personagem que desempenha: ele faz o papel de si mesmo, do homem belo, forte e esbelto por quem a arfante jovenzinha Evelyn Evans (Inge Helgard) apaixona-se perdidamente. O pai dela é contra o relacionamento, considerá-lo (vejam-se as semelhanças com “The adventure of a journalist”) um desocupado. Ela, no entanto, o faz entrar furtivamente num baile à fantasia que organizava na residência da família.
O baile, no qual o filme se centra, é antológico. Um grande salão tem esculpida em seu fundo uma criatura das trevas cujos olhos são duas janelas, e cujas pálpebras são toldos que se abrem e fecham à medida que seus frequentadores querem privacidade. Pelo salão desfilarão convivas vestidos de diabos e demais seres sombrios. Um frenesi preside a filmagem do baile, desde a chegada dos convidados até a entrada de Piel e do “Rival” do título: cientista inescrupuloso que tenta de tudo para se casar com Evelyn. Um crescendo dramático sucede-se ao deboche inicial, quando o lugar se assemelhava a uma sucursal da Babilônia.
A ânsia recupera o epíteto de “anos loucos” atribuídos aos anos de 1920. Pouco depois de Piel exibir seus dotes acrobáticos e pedir a mocinha em casamento, um robô – o primeiro jamais presente num longa-metragem, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate – adentrará pela bocarra da criatura esculpida nos fundos do salão de festas e submeterá o pai da mocinha. Neste meio tempo, um dos pouquíssimos exemplos de sororidade que jamais vi no cinema desta época aparece na pele de Julieta Carnera (Maria Wefers), amante do “Rival”, que principia adentrando a festa para persegui-lo e acaba ajudando Evelyn a se safar. O nome e o tipo hispânico da jovem são mimetizados, pelo compositor Gabriel Thibaudeau, por um tango, no primeiro momento em que ela surge em cena, num trem, no princípio da obra – esse contorno meio étnico, meio cômico presidirá as suas entradas, que tanto darão leveza à história quanto sublinharão o caráter assertivo da jovem.
Julieta troca de lugar com Evelyn, e é sequestrada pelo próprio amante. Sem se dar conta da troca, Piel segue-os. Os signos da técnica, que visitaram os filmes rodados por ele uma década antes, multiplicam-se aqui, dentre os quais a cápsula de vidro onde ele ficará preso pelos criminosos, a qual será mergulhada no mar (a cena em que os comparsas do vilão param de bombear oxigênio para dentro da cápsula, e o ar vai rareando, são efetivamente agônicas).
Nessas alturas, Evelyn já viera de descobrir o destino do amado, e já aceitara casar-se com o “Rival” para salvá-lo. Uma montagem paralela ilustra, de um lado, o esforço de Piel para resgatá-la, depois de se desvencilhar da arapuca, e do outro, o sofrimento dela pelo destino que a esperava. Há um equilíbrio muito bom, aqui, entre a ânsia e o sofrimento, os fortes e os pianos, que se alternam para um final surpreendentemente infeliz, considerando-se a cinematografia da época e especialmente este gênero de filmes: Piel chega a salvar a jovem, mas não impede o casamento – o desfecho da história o público, já então cativado pelas personagens, não conhecerá, já que ele se desenrolará apenas na terceira e última obra da trilogia.
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 3
Os programas nos dias de semana, na versão online da Giornate, são únicos. O exibido neste terceiro dia do evento é composto por “La Madre” (Giuseppe Sterni, IT, 1917), com pouco menos de uma hora de duração. Precedem-no uma joia rara, o trecho de “La vita e la morte” (Mario Caserini, IT, 1917), protagonizado pela diva italiana Leda Gys, e pelo curta promocional “Italia Vitaliani visita il regista Giuseppe Sterni per discutere del suo ruolo in la madre” (IT, 1917). O acompanhamento musical é de Stephen Horne.
A primeira obra do programa é o que sobrou de “La vita e la morte”. Sempre que flagro esses pedaços de passado que se salvaram da ruína vem-me à boca um gosto agridoce. Este é um clássico filme de diva daquela época. Gys é a etérea Leda de Belleville, dama que, casada com um magistrado, vive um affair com outro homem. Ao ir encontrá-lo, durante uma viagem de barco, ela acidenta-se. É colhida por um casal de pescadores inescrupulosos, que se aproveitam do fato de ela ter ficado desmemoriada. Nessas alturas, o piano plangente de Stephen Horne é substituído pela gaita e pela flauta, que dão sabor popular e bucólico às cenas no reduto dos pescadores.
Neste meio tempo, o marido, que sofre, descobre a traição. A mulher deixa uma filha pequenina, que dolorosamente vai deitar flores no túmulo da mãe, o oceano. O programa da Giornate narra o que se perdeu da obra: a dama envolve-se nas atividades criminosas do casal que a resgata, fato que o marido descobre ao presidir o júri no julgamento do grupo – literalmente morrendo de susto ao se dar conta de que a mulher que ele julgava morta ainda vivia. Um enredo escalafobético que, como tantos daqueles tempos, vale menos pelo que conta do que pela forma como constrói essas personas que são maiores que a vida. A obra está preservada pelo Eye Filmmuseum, onde também se encontram as demais do programa.
O próximo filme, cuja tradução literal livre é “Italia Vitaliani visita o diretor Giuseppe Sterni para discutir seu papel em La Madre, faz jus ao título; é uma peça de divulgação do filme. Apesar de procurar se vender como um filme de atualidade, não engana que é posado – Vitaliani, a protagonista de “La Madre”, abre a cortina teatral que vai dar na sala do diretor, cuja cadeira está colocada num conveniente enquadramento frontal. Ela faz volteios e senta-se dramaticamente enquanto Sterni supostamente lhe apresenta o papel que ela desempenhará.
A canastrice do conjunto mal nos prepara para “La Madre”, em que Vitaliani deixa clara a sua estirpe: ela era prima de Eleonora Duse, atriz teatral idolatrada por um dramaturgo exigente como George Bernard Shaw pela naturalidade que imprimia ao repertório (sobretudo realista) que representava. Como Duse (que para o cinema lamentavelmente apenas fez um filme, “Cenere”, de 1916), Vitaliani é adepta dessa aproximação despida e moderna aos papéis que representa. Nesta obra, ela, que então contava com cerca de 50 anos, não se incomoda de se parecer 20 anos mais velha para representar o papel-título. Ela é a mãe do pintor Emanuele (Giuseppe Sterne, também o diretor da obra).
O rapaz é construído como um meninão. É um pintor com muito talento e pouco tutano. Caberá à mãe salvá-lo de uma femme fatale típica quando ele viaja do vilarejo onde moram até a capital, para aprimorar a sua técnica. A mãe torna-se a sua fonte primordial de inspiração, já que ele tem o seu talento descoberto por meio de um quadro que a tematiza. É nos braços dela que ele se joga depois que a cidade que o viu partir como um anônimo recebe-o como herói. Ela, que esconde uma doença grave, morrerá pouco depois. A cena que fecha a obra flagra o jovem ajoelhado diante do anjo, encomendando a alma da progenitora.
A mãe não tem nome, funciona como símbolo. Esta obra recupera um cânone do gênero melodramático: a associação da personagem materna com a virgem Maria, a Mater Dolorosa, ao mesmo tempo em que a jovem que procura desencaminhar o jovem é uma espécie de Dalila. O cinema atrelava, então, a mítica do estrelismo aos mitos ocidentais. Se a narrativa é convencional, vale sobretudo pelo trabalho sólido desempenhado por Italia Vitaliani, uma bela atriz que eu acabo de conhecer.
quinta-feira, 12 de outubro de 2023
Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 2
Domingo foi dia de outro programa duplo, composto por obras alemãs: o primeiro dedicado ao diretor e astro Harry Piel, centrado nos filmes “Das abenteuer eines journalisten” (“The adventure of a journalist”, 1914) e “Das Rollende hotel” (algo como “O hotel sobre rodas”, 1918), ambos dirigidos por ele, com acompanhamento musical de José María Serralde Ruiz. Já o segundo programa centrou-se no longa-metragem “Der Berg des Schicksals” (“Mountain of Destiny”, Arnold Fanck, 1924), com acompanhamento musical de Mauro Colombis.
Piel é para mim uma das descobertas desta Giornate. Embora Jay Weissberg comente que certo jornal recifense apontou o artista como um dos preferidos do público, eu não me lembro de ter passado por ele em minhas pesquisas. Atualização em 15/10 graças à pesquisa de Luciana Araújo: a 16 de abril de 1922, o Jornal do Recife publica uma pesquisa sobre as preferências dos espectadores, segundo a qual Piel constava na lista dos mais simpáticos:
Este é o primeiro de dois programas centrados no artista, a serem exibidos na versão online da Giornate. Nesses filmes, embora ele desempenhe o papel exclusivo de diretor, observam-se características semelhantes àquelas presentes nas obras que ele protagoniza. São filmes de aventura, no estilo dos seriados protagonizados por Pearl White, apesar de mais longos (cada um tem cerca de 50’ de duração).
O primeiro deles foi lançado, segundo o programa da Giornate, pouco mais de uma semana antes do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, fato que desencadeou a Primeira Grande Guerra. Foi, ademais, vendido como uma obra que tematizava o desenvolvimento técnico, sejam os carros velozes, seja a explosão remota de minas submarinas – pouco depois, a violência vendida como produto da indústria do entretenimento desdobrar-se-ia real naqueles mesmos sítios.
O contexto aqui não é de reflexão sobre os abismos em que nos lança a técnica. Em voga está o deleite do público que acompanha a história do jornalista Harrison (Ludwig Trautmann), e sua impossibilidade de viver a paixão que nutre pela filha de um importante cientista, pois o homem julga-o um ocioso, impossibilitado, portanto, de sustentá-la.
O entrecho amoroso serve de desculpa para o desenvolvimento da trama. O pai da mocinha tinha um rival, também cientista, o qual, para ter tempo hábil de apresentar ao governo o seu dispositivo remoto de explosão, sequestra-o. Para salvar o sogro e, enfim, provar-se merecedor da mão da mocinha, Harrison protagoniza uma perseguição ferrenha dos comparsas do cientista, e enfrentará mil perigos (como, por exemplo, um salto de paraquedas).
Há frenesi no cinema de Piel. Veja-se, neste sentido, a cena de perseguição no (impressionante) metrô suspenso de Schwebebahn: os cortes rápidos e os primeiros planos angustiantes imprimem uma visada à modernidade que não é só de flerte, também é de temor.
Já “Das Rollende hotel” é um road movie centrado na impossibilidade de a jovenzinha casadoira Addy (a adorável Kâthe Haack) se unir com o rapaz que ela ama, pois seu tutor deseja casá-la com um velhote a quem ele deve dinheiro tão logo ela complete a maioridade. Malgrado seja o provocador da trama, o rapaz é um mero coadjuvante dela. No centro da história estão, além de Addy, o amigo dele, Joe Deebs (o elegantíssimo Heinrich Schroth) – o responsável por salvar a jovem do destino sombrio que a esperava, abrigando-a, nos dias derradeiros antes de sua maioridade, no tal hotel sobre rodas do título. Há ainda o impagável Alfred Delbosq, no papel do detetive Sharf, que a todo custo tenta recuperar a jovem para devolvê-la ao tutor.
O enredo rocambolesco serve de desculpa para um passeio turístico pelos sítios os mais diversos, dos Alpes bávaros – onde o galante cicerone de Addy mostrará sua destreza, salvando-a ao carregá-la temerariamente por sobre os fios do teleférico que ainda estava para ser instalado – aos hotéis frequentados pela alta goma europeia. O cinema é, neste filme, uma viagem sem sair do lugar, em que o espectador é passageiro que viaja em primeira classe. E para estender tal viagem, à medida que seguem, Deebs vai deixando pistas ao detetive, até que o homem vai finalmente flagrar o casal no vagão de um trem, enquanto os pombinhos se casam.
“Mountain of Destiny”, o longa apresentado no segundo programa do dia, também persegue esta faceta histórica do cinema, de exploração dos cantos mais recônditos do mundo. A obra impressiona pela ousadia com que o seu diretor (também o fotógrafo, roteiriza, editor e produtor, segundo o programa da Giornate), desincumbe-se da tarefa de filmar as Dolomitas, cadeia montanhosa nos Alpes orientais, no norte da Itália.
O espaço exerce presença preponderante na obra baseada na história de Carlo Garbari, que pereceu ao tentar escalar a Guglia di Brenta, uma dessas montanhas. Um conjunto de imagens do espaço portentoso abre o filme, e elas serão repisadas como leitmotiv, denotando a pequenez humana frente à majestade da natureza.
A fotografia é um dos pontos altos de “Mountain of Destiny”. A obra divide-se entre mostrar (longamente, mas com um firme pulso dramático) os esforços de “Carbarie” para vencer a “Guglia”, em vão, e a recusa do filho dele de encarar a montanha que ceifara a vida do pai. O contraponto do pai e do filho aventureiros são a esposa dele (e mãe do menino), a excelente e contida Erna Morena, e a mãe dele, Frida Richard.
Uma palpitante montagem paralela toma o filho pequeno escalando a chaminé da casa enquanto o pai tenta, em vão, vencer a montanha. É a mulher dele que, trêmula, terá a sensação de sua morte. Décadas mais tarde, caberá ao filho dobrar a até então inexpugnável Guglia, casualmente, já que a escala para salvar a namorada, que tenta escalá-la depois de acusá-lo de covardia (passemos ao largo da portentosa cena final, da jovem ajoelhada humildemente aos pés do moço, num plano geral tendo ao fundo a imensidão branca, pois ela é fruto de seu tempo...).