Outro programa duplo neste último dia da Giornate virtual, que coincide com o encerramento do evento físico: o longa alemão “Die Straẞe” (The Street, Karl Grune, 1923), e o longa norte-americano “Conrad in Quest of his Youth” (William C. de Mille, 1920), com acompanhamentos musicais, respectivamente, de Günter Buchwald e Neil Brand.
Embora “Die Straẞe” gire em torno de uma porção de personagens, sua protagonista absoluta é, como aponta o título, a rua. A cidade é, no filme, o espaço do perigo, destaca Jay Weissberg na apresentação da obra, tanto que o filme constrói a cidade em estúdio numa perspectiva menor, de modo que os personagens se percam nela.
Digno de nota também neste filme é o fato de ele flertar com as reflexões sobre o cinema como obra de arte per se, que prescinde os intertítulos – portanto, a literatura –, visando a contar as histórias unicamente a partir das imagens. Algumas obras desta seara resistiram ao tempo, a exemplo de “The last laugh” (F. W. Murnau, 1924), cuja drama gira em torno do drama psicológico do atendente de hotel que perde o emprego – e, consequentemente, o lugar social que vinha com a posição, embora modesta.
A exemplo da obra de Murnau, “Die Straẞe” concentra-se na visualidade, lançando mão de boas estratégias para conceber e potencializar o burburinho urbano, a exemplo da dupla-exposição, que concentra num mesmo plano um conjunto de signos da metrópole. Lembra as sinfonias metropolitanas que seriam rodadas no final desta mesma década, em que o âmbito visual ganhava primazia ao verbo, o que era um respiro nos estertores deste cinema de que nos ocupamos aqui, que de mudo não tinha nada.
O filme acompanha um dia da vida de um conjunto de indivíduos de classes populares: um par de escroques, uma prostituta, um velho cego e seu pequeno neto, um casal de meia-idade. O marido de meia-idade deixa a esposa para viver uma aventura extraconjugal, acabando na cadeia, enredado pelos escroques e pela prostituta, e quase comete suicídio – todavia, tão logo volta para casa vê a esposa repetir o gesto automático de servi-lo, sem emitir qualquer questionamento; um quiproquó faz o menininho denunciar o crime cometido pelo pai, salvando o inocente da prisão.
A obra segue o enquadramento do gênero melodramático, tipificando os personagens para facilitar a sua legibilidade pelo público tão letrado neste gênero – estratégia seguida por Murnau em “The last laugh”, aliás, e na qual ele atingiria a excelência no absolutamente maravilhoso “Aurora” (1927). Como nessas obras, “Die Straẞe” procura fazer emergir a psicologia dessas personagens típicas, atingindo interpretações filigranadas.
De cepa bem diferente, embora também beba da fonte do melodrama, é o ótimo “Conrad in Quest of his Youth”, dirigido pelo irmão do poderosíssimo Cecil B. de Mille. O Conrad do título é Thomas Meighan, que desempenha o papel do homem de cerca de quarenta anos que, voltando melancólico da guerra, vai em busca, como aponta o título da obra, da juventude perdida. O filme equilibra doses ideais de melancolia e humor. Encontrando no mausoléu em que habita o seu fiel mordomo, Conrad pergunta-se porque sobreviveu ao conflito, enquanto tantos amigos dele que tinham a quem voltar pereceram. Olhando-se numa fotografia da infância, em meio a um grupo de amigos, escreve-lhes nostalgicamente.
A carta vai dar nas mãos de um leitor assíduo de romances “alegres” e de duas matronas, uma delas riquíssima. Não obstante, todos topam a aventura de reviver ipsis litteris a infância despreocupada, o que se revelará, como o leitor bem pode imaginar, um tiro no pé – nossos verdes anos são deleitosos porque a gente os olha pelas lentes cor de rosa da memória: “Ser adulto é chato, mas ser criança é horrível.”, dirá o aficionado em romances alegres pouco antes de fugir da experiência de Conrad, o qual, ato contínuo, embarcará atrás de alguns romances da juventude, com resultados negativos análogos.
A obra revelará que fórmula da juventude não se encontra na ressureição do passado, mas na fruição do presente. Conrad curiosamente descobrirá isso ao conhecer a mocinha da história, uma jovem que empreendia uma viagem parecida com a dele – atriz que se casara dentro da nobreza e, recém-viúva, engaja-se novamente na trupe em que ela atuava, por não suportar a melancolia.
Em meio aos longos intertítulos, “Conrad in Quest of his Youth” defenderá uma obviedade romanesca – independentemente da idade, o amor é o caminho para a juventude. A edição virtual da Giornate termina nesta visada agridoce ao passado, que permeia de nostalgia mesmo as sequências mais pragmáticas. É a nostalgia que me toma ao ouvir o acompanhamento musical da obra, que tão bem enlaça o drama ao riso. A música é de autoria de Neil Brand, o qual eu ouvi pela primeira vez na longuíssima e inolvidável exibição de “Les Misérables” (Henri Fescourt, 1925), na primeira vez em que estive em Pordenone, em 2015.
2 comentários:
Amiga, mais uma vez revivo a semana que passou através de suas vivas palavras sobre a seleção online de Pordenone, desta maneira como só você sabe fazer. Agradeço por esta cobertura - a minha vai ao ar hoje mais tarde - e digo, sobre From Hand to Mouth, o filme de Harold Lloyd: ele já estava disponível numa iniciativa chamada The Silent Comedy Watch Party, uma seleção de comédias mudas com acompanhamento ao piano que vai ao ar no YouTube desde o começo da pandemia. Você pode encontrar todos os filmes já exibidos no YouTube, e inclusive revisitar este que tanto lhe encantou.
Beijos,
Lê
Querida Lê, bom dia!
Muito obrigada pela leitura e pelas palavras tão sensíveis sobre os meus textos! Também pela indicação preciosa do Comedy Watch Party!
Bjinhos
Dani
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