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Pordenone |
Esta versão, mais enxuta – um ou dois filmes são apresentados por dia, ao contrário das 12 a 15 horas de programação diária in locus –, teve início em ambas as modalidades ontem. Virtualmente, os interessados podem acessá-la em https://www.mymovies.it/ondemand/giornate-cinema-muto/, mediante o pagamento de uma taxa de adesão. Aqueles que quiserem saber detalhes sobre as obras apresentadas no evento podem acessar seus Catálogo e Calendário em https://www.giornatedelcinemamuto.it/.
No sábado, primeiro dia da Giornate, o programa foi composto pelo longa metragem “A little bit of Fluff” (de Jess Robbins e Wheeler Dryden, Grã-Bretanha, 1928), o qual foi antecedido pelos curtas “The Bond” (Charles Chaplin, EUA, 1918) e “His day out” (Arvid E. Gillstrom, EUA, 1918).
Os curtas dialogam entre si, conforme aponta o sempre sucinto e claro diretor do evento, Jay Weissberg, na nota que antecede o programa. Eles – e também o longa – compõem o programa “The Chaplin Connection”, que procura investigar as relações que cineastas ao redor do mundo estabeleceram com este genial criador.
O primeiro deles é obra do próprio Chaplin, surgida no último ano da Primeira Grande Guerra, e responde claramente ao intuito norte-americano de amealhar fundos para a campanha bélica – a cujas hostes os EUA haviam recentemente se juntado. O filme é lançado praticamente de forma paralela a “Carlitos nas Trincheiras” (Shoulder Arms, 1918), outra obra a abordar a temática, e embora seja tecnicamente interessante, encampa sem questionamentos os esforços de Hollywood, que então transformaram o cinema num instrumento de propaganda em prol da Tríplice Entente.
“The Bond” é alegórico. Faz um uso criativo de técnicas oriundas da infância do cinema, a exemplo do fundo preto, que contrasta com os personagens, potentemente iluminados, estética tão presente nas primeiras vistas de Thomas Edison. A obra é dividida em cenas com intertítulos econômicos, apresentando os vários “Bonds” (laços) que unem os homens, daqueles de amizade – e aí a leitura é irônica, já que o amigo em questão principia por atrasar Carlitos para um compromisso, e é aquele que atira arroz e depois um sapato no protagonista, depois que ele performa o laço matrimonial (com a sempre deslumbrante Edna Purviance, sua musa à época).
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"The Bond", bastidores |
O ponto culminante do filme, e último desses “Bonds”, é, claro, o “War Bond”, ou seja, o investimento financeiro dos cidadãos na Guerra – e assim, pedagogicamente, Carlitos entrega ao “Uncle San” um saco de dinheiro o qual o velhinho direciona à alegoria da indústria – um homem forçudo que municia o soldado que sairá a combate.
A ele se seguiu o norte-americano “His day out”, dirigido por Arvid E. Gillstrom e protagonizado por Billy West, o qual, segundo Weissberg, era o mais bem-reputado dentre os imitadores de Chaplin – inclusive reconhecido pelo artista –, autor de dezenas dessas imitações entre 1916 e 1920, segundo aponta o Catálogo, o que dá a dimensão da extraordinária projeção mundial de Charlie Chaplin, então. Se falta a West o sopro do gênio, que torna o adorável vagabundo único, malgrado seja tão fácil fantasiar-se como ele, sobra-lhe talento para a slapstick comedy.
West é aqui primeiramente o rapaz enamorado de Leatrice Joy, a qual ele disputa com o robusto Oliver Hardy – estamos no reino dos personagens-tipo, daí a câmera fazer mofa do casal – e, em seguida, o barbeiro que destrói visualmente os seus clientes (a exemplo de Don Likes, cujos trejeitos explicitamente femininos coadunam-se com os lacinhos que West lhe aplica sem que o cliente saiba). O humor nasce do politicamente incorreto, mas não só, pois parte considerável da graça é oriunda da habilidade com que West encampa o papel do barbeiro atabalhoado.
Ambos os curtas receberam acompanhamento musical de Meg Morley, uma das poucas pianistas mulheres a se apresentarem na ainda bastante masculina – ao menos no âmbito musical – Giornate.
Enfim, o programa fechou-se com um filme já dos estertores do cinema silencioso, o inglês “A little bit of Fluff”, dirigido por Jess Robbins e Wheeler Dryden, o qual recebeu o acompanhamento musical de Donald Sosin. A obra, protagonizada pelo irmão de Charlie Chaplin, Sydney Chaplin – adaptador, junto com os diretores, da comédia teatral de Walter W. Ellis –, para mim foi um achado.
Obra-prima de comédia, nela Syd Chaplin – cujo irresistível sorriso está a meio caminho entre a timidez e o deboche – é Bertram Tully, o rapaz recém-casado tiranizado pela sogra, a qual lhe subtrai a esposa por um curto espaço de tempo, deixando-o, no entanto, à mercê de um grupo de jovens espevitadas que participam de uma festa típica dos roaring twenties, num apartamento vizinho ao seu.
Depois de ser inopinadamente incorporado à louca celebração – na qual também nós somos mergulhados, graças à agilidade da câmera e da montagem –, Bertram vê-se metido com vários exemplares da comédia de salão daquela época, do velho ricaço à aspirante a vedete de night club, e ao gangster que a financia. Fauna que o, num só tempo, tímido e excitado Bertram não consegue se eximir de prestigiar, malgrado ele tenha prometido à sogra tirana que estudaria flauta para uma apresentação da igreja – e é um deleite ver esse almofadinha pastoril tocando um pífano hilariamente mimetizado pelo multi-instrumentista Donald Sosin.
Entre o bucolismo e o frenesi, Bertram singra aquela sociedade que testemunhava o crepúsculo de uma era – seja do ponto de vista social, já que se avizinhava a Grande Depressão, seja do cinematográfico, já que o som em breve cortaria as asas do cinema, obrigando-o a se reinventar.