Santa (1918) |
O programa America Latina [América Latina] foi composto por sessões diárias de, ao menos, uma hora de duração cada, voltadas à apresentação de filmes de várias nacionalidades. A seleção levou em consideração a raridade dos filmes. Algumas sessões voltaram-se a uma única cinematografia; outras apresentaram uma seleta de várias. A primeira, voltada ao México, apresentou uma sequência de filmes première. Noutra ocasião, exibiu-se pela primeira vez em 35 mm o (surpreendente) filme paraguaio “En el infierno del Chaco”, que apenas pôde ser exibido naquele país em DCP.
Este texto se quer sobretudo uma seleção de notas sobre essas obras. Não pretendo, portanto, me debruçar em cada uma dessas obras. Antes, desejo anotar as suas continuidades – trocadas com as amigas e colegas Luciana Araújo e Luisa Malzoni, com quem me encontrei no evento: os tipos comuns a essas cinematografias, que as diferem de outras do período, a exemplo das personagens caipiras, bastante influenciadas pelo teatro do período.
A opção por raridades fez com que se exibissem muitos fragmentos, que, se nos interessam a nós, latino-americanos, sobremaneira, são de menor interesse ao público geral (em especial o europeu e o norte-americano, que corresponde a parcela considerável dos frequentadores da Giornate, e que usualmente esvaziou essas sessões).
Mas a fragmentariedade dessas obras resvala também para o seu aspecto narrativo, pois, se parte considerável delas recebeu influência do cinema narrativo clássico, e havia o esforço imitativo, elas também beberam de âmbitos como o teatro (e a faceta mais popular dele), feito de atrações, em que a ruptura era a lei – daí a multiplicação de personagens, suas entradas e saídas sem explicação clara. Nossas cinematografias são objetos específicos aos quais esse público não está acostumado. Além disso, há um problema histórico nosso que é a falta de dinheiro – para a aquisição mesmo de filme virgem, no passado, e hoje, para a manutenção dos arquivos fílmicos.
Em sua fala sobre a obra argentina “Historia de um gaucho viejo” (1924), o diretor da cinemateca daquele país contou um causo elucidativo: como não havia verba para a restauração do filme, a sua versão em película foi copiada graças a um scanner analógico que o arquivo recebeu de presente e adaptou para que pudesse captar digitalmente as imagens. Este filme é um exemplo paradigmático da criatividade vencendo a inanição financeira.
É uma peça de resistência, e é importante vê-lo em meio a obras que custaram altas somas para serem restauradas. Também do ponto de vista narrativo ela tem interesse, pelas quebras que promove no modelo clássico: ao não investir nas cenas de ação, provavelmente pelos limites técnicos para desenvolvê-las; ao arrastar-se interminavelmente nos percalços do velho gaucho, investindo nas causas políticas de seu périplo.
Destaco duas outras obras desse programa: “Santa” (México, 1918) e “En el infierno del Chaco” (Paraguai, 1932). A primeira conta a história da jovenzinha interiorana violada por um biltre que é expulsa de casa porque, segundo a sua mãe, quando uma jovem perde a sua pureza, “cabe à sua mãe virar-lhe as costas e rezar por ela como se ela estivesse morta”. Santa deixa a sua casa num povoado minúsculo para se imiscuir no torvelinho da capital do país.
Os costumes do México urbano e rural são contrapontos à medida que a vemos lembrando-se da fauna e da flora de sua terra, enquanto se entrega aos delírios da cidade grande, envolvendo-se com um toureiro célebre e acabando por se entregar à bebida.
É um velho cego que se interessa pela menina perdida, é ele que, embora queira desposá-la, acaba por ser o responsável por enterrá-la no povoado de onde ela veio. O mexicano José María Serralde Ruiz, o único pianista da Giornate oriundo do Sul Global, criou um acompanhamento sensível, perpassado por sonoridades de seu país.
“En el infierno del Chaco” é uma obra surpreendente, embora difícil de se penetrar. Tematiza uma guerra entre o Paraguai e a Bolívia cujo objetivo era a expansão territorial deste país. Foi filmado no palco do evento, em poucos meses – descobrimos depois, conversando com o arquivista paraguaio responsável por trazer as suas latas à Pordenone –, e é criado a partir de uma colcha de retalhos: de imagens dos soldados efetivamente depreendidas dos campos de batalha; de imagens de arquivo de outras guerras; de trucagens de cenas de batalhas. E tudo isso colorizado.
Introduzem-se no filme diagramas que procuram aproximar o espectador daquilo que ele vê, no entanto, à medida que andam as setas demonstrando os avanços do nanico Paraguai na guerra que ele venceria, vemos repetidas as cenas de soldados caminhando por direções que já haviam percorrido, já que as imagens são reutilizadas mesmo dentro da película. Outros intertítulos anunciam coisas que não se veem, como a “grande agitação na cidade com o desfile do exército”, quando aparecem meia dúzia de gatos pingados assistindo aos desfiles. Há, portanto, uma mistura de cavação – embora o arquivista nos tenha jurado que o cineasta pagou a obra de seu próprio bolso – e experimentalismo que não é uma exceção no cinema latino-americano do período.
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