Pôster de “Moxov Qiz” (1928) |
O programa Uzbekistan [Uzbequistão], ao menos para mim descortinou um mundo, em especial os filmes que receberam como acompanhamento a música apresentada pela dupla de musicistas do país que tocou instrumentos típicos.
Observamos nessas obras, produzidas sobretudo nos anos de 1920 – mas também em 1930, e até mesmo em 1970 –, uma montagem bastante tributária da cinematografia russa. Cortes ágeis e síncopes marcam-nas do ponto de vista da técnica cinematográfica, enquanto no âmbito da narrativa emergem os costumes muçulmanos, contados numa narrativa muitas vezes de compreensão bastante complexa, como já anunciei no texto de abertura dessas notas.
“Ikkinchi Xotin” [The Second Wife] (Mikhail Doronin, 1927), por exemplo, é a mulher que, vituperada pelo marido por não poder engravidar, vê-se obrigada a tolerar uma segunda esposa dele. Tal mulher lhe dá filhos, e então a narrativa bruscamente coloca-a como a sua personagem central. Ela torna-se vítima do repúdio da primeira esposa. Personagens muitas vezes de aparência semelhante multiplicam-se, ou então surgem em cena sem nenhuma explicação aparente, o que atrapalha a compreensão do espectador.
A pobre segunda esposa tenta a fuga do jugo do marido que, acreditando nos detratores, passa a tratá-la com violência. Ele, no entanto, a busca de volta – e a imagem dela voltando a pé, carregando o filho, de cabeça coberta, ao lado do marido a cavalo, aos nossos olhos de hoje dá-nos a prova lancinante dos costumes que nunca mudam, malgrado a passagem dos anos, no que concerne à submissão feminina.
Ainda mais duro, mas mais claro e realmente dilacerante é “Moxov Qiz” [La lebbrosa/The Leper], de Oleg Frelikh (1928). Nele, a jovem casadoura já tem uma mostra do comportamento do marido quando, arrumando-se para o seu casamento, é agredida por ele por exibir demais o corpo. A violência torna-se uma constante, ela procura escondê-la da mãe, que vê os seus hematomas. Pouco mais tarde, é estuprada por um oficial e acaba por se tornar a sua amante. O marido descobre o caso e praticamente a mata. O pai a recolhe e o processa, mas perde a causa porque a filha cometera traição.
Estamos aqui diante de um filme especial, que embora apresente elementos melodramáticos não é um melodrama: a jovem, submetida pelo homem que a princípio a força, acaba deleitando-se com ele, um melhor amante que o marido. Esta mulher, que segundo a óptica melodramática seria uma perdida, acaba ganhando a conivência da narrativa, que parece desejar sublinhar quão nocivos são certos costumes.
Ela e os pais são expulsos de suas terras. O pai também recebe sobre si a mácula que cai sobre a filha, e ela acabará vagando até simbolicamente adentrar um asilo de leprosos, tristemente abandonados no meio de uma paisagem árida. Ela, uma Anna Karenina uzbequistanesa, a quem a traição marca como a lepra, malgrado ela fosse a princípio forçada a fazê-lo e o seu marido fosse um pulha, acaba morta naquele ambiente inóspito, neste que é um dos filmes mais marcantes da 43ª Giornate.
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