Dia 6: quinta-feira, 6 de outubro de 2021
Derradeiros dias da Giornate. A obra exibida hoje foi a comédia The Runaway Princess (Priscillas Fahrt ins Glück, de Anthony Asquith), rodado, nos estertores da era silente (em 1929), em coprodução entre a Grã-Bretanha e a Dinamarca. Vimos uma cópia de bastante boa qualidade oriunda da londrina BFI National Archive, com acompanhamento musical de Phil Carli.
Trata-se, a exemplo de His Majesty the Barber – exibido dois dias antes –, de um excelente exemplar do gênero cômico, embora tenha um roteiro mais óbvio que aquele. Inspirada no romance The Princess Priscilla’s Fortnight (1905), de Elizabeth von Arnim, a obra narra a história de Priscilla (Mady Christians), a princesa de um reino fictício da Europa que se vê enredada num casamento arranjado com certo príncipe de um reinado vizinho. Ela o desconhece e tampouco deseja conhecê-lo. Procurando fugir da violência da imposição, foge do país no dia da apresentação oficial do noivo, acompanhada pelo velho mestre. Ambos vão dar na buliçosa Londres dos roaring twenties, de todo diferente do lugar bucólico donde saíram.
Outro filme, portanto, cujos cerne e caracteres são centrados nas tópicas da “Ruritania”. Outras características dessas obras presentes nesta é o travestimento. A princesa surge incógnita em Londres. Ali, procurará a todo custo viver uma vida comum, como o fazem tantas de sua estirpe espalhadas pela cinematografia antes e depois dela, a exemplo da (amada) Audrey Hepburn em Roman Holiday (A Princesa e o Plebeu, 1953).
Características originais dão frescor à tópica. São elas menos o galanteador (Paul Cavanagh) que Priscilla conhece ainda em sua terra – e por quem se apaixona reciprocamente –, o qual passa a persegui-la tão logo a encontra no trem, do que o trio de falsificadores de moeda que entrecruza os caminhos dos personagens. A moeda falsa que uma das moças da quadrilha desova nas mãos do mestre de Priscilla ainda no trem que os tira do reino de Priscilla pontuará a história, que é também costurada pela presença do “Detetive” atrapalhado (Claude H. Beerbohm), o qual erroneamente tomará Priscilla por uma das meliantes, colocando-se no encalço dela juntamente com o cortejador da jovem, que apenas a persegue com intuitos românticos.
Gags sucedem-se umas às outras, enquanto Priscilla procura (em vão) provar ao rapaz que pode ganhar a sua vida sozinha – recebendo como resposta dele (hélas) invariavelmente um paternalista riso de canto da boca. Num desses momentos – o mais hilário da Giornate até agora –, enquanto procura emprego numa loja de departamentos, a jovem acaba confundida com uma patinadora famosa, descobrindo o engano apenas quando é literalmente empurrada na pista onde ocorria certo desfile de moda, quase destruindo o lugar. Noutro, Priscilla termina contratada por uma das meliantes (atriz sensacional cujo nome me foge) depois de entregar ao trio de escroques um par de chapéus estropiados que vinham de ser “atropelados” no centro da cidade – já que a mocinha, embora princesa, era uma autêntica caipira no que concernia ao burburinho urbano.
O desfecho é, como já adiantei, óbvio: levada em juízo depois de ser tomada como membro da quadrilha, Priscilla é obrigada a desvelar a sua identidade; o seu par romântico – a quem a essa altura ela já se havia declarado – faz o mesmo e descobrimos (ohhh!) que ele não é outro senão o príncipe a quem ela fora prometida. Aqui, como em The Roman Holiday, não há espaço para o questionamento da tradição. Todavia, ao contrário do outro filme, não o há também para a melancolia, daí a semelhante arranjo da ação.
Em The Runaway Princess, no entanto, o percurso vale mais que o destino. Anthony Asquith é um grande artífice de gênero cômico, conduzindo a ação sempre com graça. Há aqui ainda uma excelente direção de atores, com destaque para o trio de escroques (sobretudo as moças, que atuam com uma ironia chistosa) e o par romântico (destaque incontornável para a deslumbrante Mady Christians).
Igualmente, se falta originalidade ao mote, o roteiro de Ian Campbell-Gray e Hermann Warm é repleto de cenas graciosas (a exemplo daquela em que a criada se finge gripada para que a condessa Distahl não suspeite de que Priscilla, que espirra, está escondida dentro do armário).
The Runaway Princess é também curioso porque, em suas tomadas documentais da Londres dos estertores dos anos 20, acena às tópicas das “Sinfonias Metropolitanas” rodadas contemporaneamente. E ao estabelecer como contraponto o bucolismo do reino fictício e a feérica cidade de Londres, joga luzes de forma acariciante à própria condição da Inglaterra, em que ambas as realidades poderiam coexistir.
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