A Giornate abre espaço para a sua primeira vamp, neste seu penúltimo dia.
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Na abertura da obra, flagramos o notívago Manolescu despertando à hora de ir ao cassino. Após receber do local uma carta de desconvite, uma vez que ele já devia muito à casa, vê, nos dizeres brilhantes do teatro mais próximo, a chave de seu destino: “Nova revista Adeus Paris: Rumo a Monte Carlo”. O personagem embarca na mesma noite, encontrando, no vagão-dormitório vizinho, Cleo (Brigitte Helm): loura, longilínea, nariz e lábios finos, todo o arquétipo da vampira impregnado num corpo de mulher. Ela escapa do companheiro, cuja violência teme. Escondendo-se no vagão de Manolescu para fugir à apresentação do passaporte, acaba enredada por ele, numa cena suficientemente elíptica para fugir à censura, mas que acena para um estupro clássico. Portanto, o fato de ambos encetarem um relacionamento romântico ato contínuo choca os nossos olhos contemporâneos.
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Repudiada por Manolescu quando o visita, Cleo apenas irá reencontrá-lo quando ele já pediu a outra em casamento, e o casalzinho enceta com a criada uma florida relação familiar em que esta torna-se a mãe substituta de ambos. A “família tradicional” desde sempre tão incensada exibe-se aqui em sua mais perfeita forma.
Mesmo que (a deusa) Brigitte Helm despeje no antigo amante a sua ira – denunciando a Jeanette o passado dele –, o espectador ansioso apenas o verá atrás das grades após testemunhar, junto com os dois policiais que o vão prender, a mais pungente cena de harmonia familiar, em que este bandido moralmente reformado celebra a virada do ano com a jovem noiva. A Cleo cabe o retorno ao seu primeiro violento amante e, após a rejeição dele, o abandono.
Trata-se, como se vê, de uma trama datada, rançosa, de caracteres delineados à flor da pele, de bem e mal claramente discerníveis... Enfim, de um espetáculo que usa o maquinário da possante indústria do cinema para nutrir a sanha da sociedade machista. No entanto, a performance de Brigitte Helm eleva-o desse preconceito rasteiro até a uma altura insuspeitada. Que excepcional atriz era esta mulher, que concebe com inteligência uma personagem esférica quando tudo o que se esperava do tipo que desempenhava era a planura: seu queixo altivo se projeta enquanto as suas pálpebras tremem, e vemos a fragilidade que precisa ser escamoteada frente à necessidade de se impor num mundo masculino. Helm porta os trajes da vamp, porém, subverte o tipo, construindo uma personagem que anuncia haver profundidade debaixo da aparência. Ela vale o filme.
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