O filme programado no terceiro dia da versão virtual da Giornate foi o italiano Profanazione (1924-1926, 63 min.), dirigido por Eugenio Perego, numa versão digitalizada pela Cineteca del Friuli da cópia disponível na coleção La Cappella Underground de Trieste, depositada no arquivo de Gemona.
O catálogo do evento contextualiza a obra: trata-se de uma produção que remonta a 1921, quando foi censurada, tendo sido reeditada até 1926, data de seu lançamento. Seu entrecho já nos permite entrever o motivo da censura. Profanazione traz como cerne a luta de Giulia Quaranta (Leda Gys) para pagar certa dívida com o dinheiro que o marido lhe confiara, o qual fora subtraído pelo irmão dela.
O rapaz é mais tolo que mau: tendo a irmã e a pequena sobrinha sido confiadas a si quando o marido de Giulia precisa viajar, ele se aproveita da oportunidade para se apoderar de uma quantia em dinheiro a qual tinha por intuito devolver. A soma é, no entanto, cobrada antes que ele possa fazê-lo, o que faz os irmãos encetarem um périplo para reaverem o montante. A derradeira estação da via crucis de Giulia é a casa de um apaixonado seu. Ele lhe empresta o dinheiro e acaba por subjugá-la. O irmão dela chega ato contínuo ao estupro, e é dali retirado pela mulher que teme um escândalo.
Ela termina grávida e, confessando-se a um sacerdote, segue a sua sugestão de esconder a verdade do marido. Uma elipse temporal, e o espectador se dá conta de que Giulia era atormentada pelo estuprador, que desejava conhecer a filha. Ela procura sustar-lhe o passo, temendo a reação do marido; o qual virá a descobrir tudo quando a esposa e o seu algoz envolvem-se num acidente de automóvel.
Aparentemente era demais para a moralidade carola italiana aceitar que o fruto de um estupro fosse criado por outrem. Desconheço o teor das versões anteriores para saber o que foi modificado, permitindo a liberação do filme. De todo modo, o desfecho da história é muito mais luminoso do que o seu desenrolar nos permite supor. O marido (Luciano Quaranta/Alberto A. Capozzi), depois de supostamente arrancar do estuprador o nome da filha deste (temeroso do que poderia ocorrer à sua filha, o homem mente-lhe, dando-lhe o nome da outra criança), repudia a pequena numa cena que comove as pedras. Giulia, desmemoriada desde o acidente, recobra a consciência quando vê a agressão.
A criança repudiada amarga uma febre mortal, e pede em vão pelo pai, que apenas deixa de repudiá-la quando se lembra de um ensinamento que ele próprio dera às filhas quando elas recuperam não apenas o seu passarinho perdido, mas dois: que amando as duas aves elas acabariam por amar aquela que originalmente lhes pertencia. Também a pobre mulher é perdoada – ela que não tivera culpa alguma –, apenas depois que o irmão dela, agora um engenheiro de sucesso, volta e confirma ao marido a verdade que ele não aceitara dos lábios da esposa.
Trata-se de um filme maduro. Em primeiro lugar, por colocar em debate o estupro e os seus frutos, tema candente naquele princípio de anos 20, recém-saídos da Grande Guerra, em que o estupro foi uma sombria realidade. Mas também por atribuir protagonismo absoluto à figura feminina, fato que foi favorecido pela escalação da estrela Leda Gys – referida como a “Madonna do cinema” pela companhia que roda a obra, ainda segundo o catálogo do festival. Neste sentido, não é um acaso o título da obra, “Profanação”. Metonímia de Nossa Senhora, seu corpo é um sacrário.
Santa e diva: os dois termos intercambiam-se, na transmutação própria do cinema daqueles tempos. Cinematograficamente, Leda Gys surge linda e etérea; seus olhos grandes e seu rosto, semivelados por véus negros, são imperscrutáveis. A câmera toma-lhe uma distância respeitosa que ressalta a sua sacralidade e, portanto, o ato vil ao qual ela é submetida. Ela apenas se transmuta ao fim da obra, quando, ao ver a filha sendo agredida, levanta-se altiva para protegê-la.
Neste contexto, cumpre destacar também a qualidade do trabalho de Eugenio Perego, um grande diretor. A cena do estupro, por exemplo, é feita com contenção: o público desvela o que aconteceu – e a violência empregada – devido à desordem do espaço, que a câmera investiga, enquanto toma a mulher envergonhada que procura se arrumar. A encenação dá de ombros à estética melodramática e, ao economizar nos ímpetos, dá a Profanazione um ressaltado tom de crítica social. Um belíssimo filme, que na versão virtual da Giornate recebeu um acompanhamento musical preciso de Mauro Colombis.
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