Dia 1: sábado, 1 de outubro de 2021
Na primeira semana de outubro de cada ano os amantes do cinema mudo têm um encontro marcado com a Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ou Pordenone Silent Film Festival, que este ano, a exemplo do ano passado, acontece de forma híbrida (interessados nas edições anteriores podem conferir resenhas de vários de seus programas neste blog). Graças às facilidades do meio digital podemos fruir, de todos os cantos do mundo, súmulas do programa apresentado no Theatro Verdi ao longo dos oito dias do festival, acalentando um pouco – falo por mim – a saudade doída das ruelas daquela cidadezinha tão linda.
Neste primeiro dia nos foi apresentado o italiano Sui gradini del trono (On the Steps of the Throne, 1912, 61 min.), dirigido por Ubaldo Maria Del Colle. Preservada pela Eye Filmmuseum, de Amsterdam, a cópia possui qualidade surpreendente, dado que a obra tem 110 anos. Ela felizmente chegou aos nossos dias, menos pelo seu enredo que pelo modo surpreendente como faz uso de recursos cinematográficos como a profundidade de campo.
Conta-se ali a história de Wladimir (Alberto A. Capozzi), herdeiro ao trono do reino fictício de Silistria – a Giornate presencial deste ano, muito mais ampla que a sua versão digital, apresentará um rol de filmes passados em reinos fictícios, e este, segundo o Catálogo do evento, traz inúmeros elementos de O prisioneiro de Zenda, publicado em forma folhetinesca no Corriere dela Sera entre 1904 e 1905.
O rapaz – a bem da verdade, Capozzi já parecia maduro para o personagem do jovem enamorado – e a sua prima, a Princesa Olga (Maria Gandini), estão prometidos um ao outro. É história de mocinhos e vilões bem marcados. Giovanni Enrico Vidali desempenha o papel do ardiloso regente Backine, que, para casar a sua filha com Wladimir, ardilosamente organiza uma suposta viagem de negócios do rapaz a Paris.
Lágrimas de despedida, fotos trocadas. Wladimir aparentemente sente menos a falta da namorada que ela de si, dado que, pouco tempo depois, já o vemos num suntuoso clube parisiense, momento em que flagramos um uso tão sofisticado de profundidade de campo que chocaria os amantes de Orson Welles. Um longo plano único – falo de cabeça, pois cada filme fica lamentavelmente apenas 24 horas disponível, e não posso mais revê-lo – toma em conjunto as mesas alinhadas verticalmente, um corredor central por onde escorrega um casal de dançarinos bailando um tango. Atrás deles, garçons servem os inúmeros efusivos convivas, distribuídos por todas as mesas, da última à primeira. À direita, em primeiro plano, uma bela mulher desfruta do evento, entrando e saindo do enquadramento. Todo esse bem composto conjunto recupera o status de capital dos prazeres atribuído a Paris, lugar de incontáveis deleites. É impressionante isso se construir filmicamente, numa única tomada e sem nenhum intertítulo, 110 anos atrás.
Pois bem, neste lugar Wladimir será enredado por Thaïs. A alusão à heroína da então recente ópera de Massenet não é um acaso. Como a cortesã operística, a francesinha conquista o príncipe numa dança. Ambos passarão, ato contínuo, a viver um affair muito bem construído do ponto de vista cinematográfico, compreensível mesmo com os breves intertítulos. Numa cena de toucador, em que a jovem se despede do amante para descobrir a foto da outra, emerge a violência passional da sedutora dançarina, que, juntamente com Bakine, se transformará em sua algoz.
Wladimir deixa-se levar a uma casa abandonada. Pisando incautamente num alçapão, é aprisionado em seu subsolo, lugar que os vilões desejam explodir para se livrarem dele. Já àquela altura descobriram um sósia de Wladimir, Chichito – pelo nome, aparentemente um vilão mexicano, como já então a cinematografia sistematizara –, que instrumentaram para voltar a Silistria, casar-se com a filha de Bakine e tomar posse do reino. A trama rocambolesca prenuncia os seriados cinematográficos que se notabilizariam a partir do ano seguinte.
No entanto, um quiproquó inesperado: Thaïs, a exemplo da sua contraparte operística, se arrepende. O final aqui é menos doloroso para o mocinho do que é para o monge Athanaël, que salva a alma da sedutora cortesã para perder a sua. Wladimir volta para casa e susta a empresa de Chichito no momento em que ele era coroado rei, subindo ao trono com a Princesa Olga, seu – quase – único amor.
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