A Mostra del Cinema di Venezia faz 90 anos. Para celebrá-los, a Giornate exibe, em seus programas presencial e online, Po Horách, Po Dolách (1930), ou, Over Mountains, Over Valleys (Para além dos montes, para além dos vales, em livre tradução), documentário eslovaco rodado por Karel Plicka cuja cópia em nitrato foi gloriosamente restaurada pela pela Slovenský filmový ústav; obra que foi exibida durante a primeira Mostra, em 1932. Antes dela vimos o curta esloveno Kralj Aleksander Na Bledu (King Aleksander’s Visit to Bled, de Veličan Bešter, 1922).
A Eslovênia situa-se na porção da Europa donde brotou a “Ruritania”. Daí o interesse que ela desperta não apenas na ficção, mas no documentário. Este curto filme se debruça sobre a passagem dos jovens noivos rei Aleksandar I Karađorđević e rainha Maria, por ocasião de sua lua de mel. Palacetes e o paradisíaco lago de Bled são objetos de longas panorâmicas banhadas em viragens coloridas que ressaltam a mítica do lugar.
O filme principal da noite é uma preciosidade, por conservar os folguedos e costumes de um conjunto de vilazinhas eslovacas, preservando-as à posteridade, tal qual a “múmia da mutação” referida por André Bazin.
Vasculho a história da Eslováquia, país cuja colonização remonta aos celtas, quase 25 séculos atrás.
Em 1918, ela formava com a Boêmia e a Morávia a Checoslováquia, Estado próspero que principiaria a se esboroar em fins dos anos 30, quando o Sul da Eslováquia cai nas mãos da Hungria. Chefiada por um líder fascista, em 1939 a Primeira República Eslovaca torna-se independente da Checoslováquia, dobrando-se aos nazistas.
Karel Plicka flagra, no ano de 1930, este período de calmaria. Ou melhor, a constrói cinematograficamente, já que os inúmeros camponeses tomados nas dezenas de vilas situadas entre as montanhas do país invariavelmente surgem com seus trajes de domingo, prontos para ilustrar ao cinematografista cada brincadeira tradicional, cada técnica de bordado e de tecelagem, bem como o cuidado com a criação de ovelhas, o passo a passo de sua ordenha e a produção de queijo (destaquem-se as mais variadas e adoráveis formas esculpidas para a acomodação do laticínio – a exemplo daquela em forma de pato), e os rituais em torno do casamento.
Nesse afã de sistematizar os usos e costumes daquela gente, todos os personagens recebem destaque análogo. Como num compêndio, surgem as brincadeiras das garotinhas e dos garotinhos às jovens e aos jovens; as danças e os trajes típicos de cada região. A reiteração algo insistente das brincadeiras masculinas em que se ressalta o âmbito físico denota a força dos rapazes, ao mesmo tempo em que se destaca a delicadeza, a timidez e os dotes manuais das moças, que desde jovem aprendem a bordar com as matriarcas da família. Não há aqui espaço para o questionamento de valores tradicionais, mas sim o desejo de ressaltá-los, aparando quaisquer arestas.
Os vilarejos situados Para além dos montes, para além dos vales transformam-se no locus amoenus da tradição, lugares onde a paz é perene. E seus habitantes, tomados em incessantes contra-plongées, são monumentalizados para caberem na forma que o cinema de Karel Plicka constrói para eles. O filme convida-nos à contemplação, preferindo, à estruturação de um roteiro que delineie pontos altos, a flanerie. Dedica-se a desvelar as características de cada ponto de chegada, soando, por isso, ocasionalmente repetitivo. Este é, quem sabe, o objetivo principal de Plicka, que era folclorista e etnógrafo. O pianista Andrej Goricar tem trabalho em organizar este material no plano musical, dando-lhe ritmo, e o faz com desenvoltura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário