terça-feira, 11 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2022 – Dia 8, parte 1


Dia 8: sábado, 8 de outubro de 2021 

Derradeiro dia da Giornate. Duas obras do período final da arte muda nos foram exibidas em dois programas diferentes, ambas norte-americanas, um drama e uma comédia: The Lady (de 1925, dirigido por Frank Borzage, 85 min.), acompanhada ao piano por Daan Van Der Hurk, e Up in Mabel’s Room (1926, Mason Hopper, 79 min.), que teve acompanhamento musical de Günter A. Buchwald e da Zerorchestra. Antes do drama de Borzage foi igualmente exibido o curta Japan I Fest (Japan festivals, circa 1914-16). Cada programa será aqui apresentado numa resenha separada. 
Como destaca Jay Weissberg, diretor do festival, o curta faz parte dos 4% da produção silente japonesa que resistiu ao tempo. Trata-se, portanto, de uma preciosidade, a qual foi localizada na Nasjonalbiblioteket, em Oslo/Mo i Rana – nem o título, nem a data de sua produção remanescem, tendo sido ambos atribuídos pela instituição que localizou a obra. 
Duas cerimônias nos são apresentadas, o ritual de encontro dos sacerdotes budista e Shintō e a procissão Tayū Dōchū. A segunda delas tem um destaque incontornável – foi a partir da data deste desfile, documentação que resistiu ao tempo, que se pôde datar o filme. Trata-se do desfile das Oirans, cortesãs de categoria mais elevada que as gueixas, que poderiam oferecer favores sexuais – com exceção da Tayū, a mais elevada categoria entre elas –, além de serem cultivadas nas artes tradicionais. Assim, moças e menininhas que mal se sustentam nas pernas sucedem-se umas às outras, desfilando maquiagens que as assemelham às bonecas de porcelana e belos e pesados trajes. Suas chinelas de altas plataformas e seus passos cruzados terminam por as destacar dos demais mortais que as observam aos milhares, muitas vezes maltrapilhos e encardidos. O Japão que se perdeu na poeira dos tempos surge aqui com todo o seu esplendor e o exotismo que tanto atraiu as plateias ocidentais à época. 
Em seguida exibiu-se The Lady, a segunda obra protagonizada por Norma Talmadge (atriz homenageada pelo festival) apresentada na versão digital da Giornate. Dirige-a Frank Borzage, competente diretor do gênero dramático, a quem cabe a batuta, por exemplo, da obra-prima Seventh Heaven (1927). Na obra, Talmadge desempenha o papel de Polly Pearl, a jovem atriz de Teatro de Variedades na França dos estertores da Belle Époque. A obra se constrói a partir de flashbacks. O passado de desventuras ressurge dos lábios da já madura Polly, na mesa de seu bar, enquanto ela desfia a sua vida pregressa a um frequentador. Aqui conhecemos outras facetas da atriz que nos surpreendeu em Yes or no. Norma Talmadge não à toa era bem reputada – ela se tratava de uma das mais talentosas atrizes da Hollywood dos anos de 1920. 

O catalisador da narrativa da senhora é a chacota que ela sofre de um frequentador do seu estabelecimento quanto diz a ele que é uma lady. A partir dos flashbacks, observamos que ela passou uma vida tentando atingir o status de dama, desde quando, ainda jovem, foi rechaçada pelo sujeito com o qual se casara (um típico almofadinha, formado nos rapapés da sociedade, mas raso como um pires e de moral claudicante) porque ela não compreendia o jogo social. Polly pare um filho deste relacionamento no reles boteco de beira de cais no qual ela passa a trabalhar. 
O bebezinho comove a dona do estabelecimento – e a gente, e as pedras...–, que ajuda a malfadada jovem quando o avô da criança surge para reavê-la, e a mãe teme que o menino tenha o mesmo fim do pai no aspecto moral. Depois de entregá-lo a uma velha senhora inglesa pertencente à alta sociedade se afeiçoara a ele, Polly encetará durante anos um périplo pelas ruas da cidade, como uma gasta vendedora de flores nas ruas de Londres, procurando em todas as crianças o menino que se fora. 
Todavia, quererá o destino, essa entidade tão querida ao melodrama, que a mulher o encontre quando termina de contar a história, em seu próprio bar, após um tiroteio ter lugar ali. O dispositivo de reconhecimento, outra tópica do gênero, é aqui bastante criativo: o rapaz jaz desmaiado nos braços da mãe incrédula, sendo reconhecido pela pulseira com o seu nome que ele traz no pulso, já que faz parte de um batalhão. Quando ele acorda, ela procura, sem se desvelar, assumir para si o tiro que, na confusão, ele dera no próprio amigo. É uma “perfeita lady”, afirma-lhe o seu interlocutor, atribuindo a si o epíteto que a vida toda lhe fora negado. Também o menino fora criado para ser um cavalheiro, ela constata, já que não aceita que ela purgue pelos seus erros. 
O enredo da obra, adaptado por Frances Marion da peça de Martin Brown, é um bom exemplar do gênero melodramático, construindo caracteres e ação de modo verossímil – sempre lembrando-nos de que aqui se trata de verossimilhança de melodrama, em que invariavelmente se injeta uma dose de fantástico. Há ótima reconstituição de época, especialmente do fim da Belle Époque, período de barreiras sociais mais rígidas – para além de seus glamurosos espetáculos de vaudeville, os eventos sociais frequentados pela nata na Riviera francesa, que apenas aceitavam os iniciados. 
O páthos melodramático é mobilizado com eficácia notadamente por Norma Talmadge, que, num desempenho contido, não só é a dama como é a mãe arquetípica. O talentoso pianista Daan Van Der Hurk mimetiza-a, desenhando a ação musicalmente com calidez despida de pieguice. Esses dois filmes protagonizados por Norma Talmadge foram um convite assertivo ao público da Giornate para que a obra desta ótima atriz da arte muda seja conhecida em sua extensão.

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