Em seu quarto dia, a Giornate virtual nos preparou duas comédias, o curta norte-americano Rupert Of Hee Haw (dirigido por Percy Pembroke, da Hal E. Roach Studios, 1924) e o longa sueco Hans Kungl. Höghet Shinglar/Majestät Schneidet Bubiköpfe, ou His Majesty the Barber/Sua majestade, o barbeiro (Ragnar Hyltén-Cavallius, Oscar Hemberg, AB Isepa, National-Film, 1928). Ambos foram acompanhados com artesania ao piano por Donald Sosin.
O curta é protagonizado por uma estrela cômica da época, Stan Laurel, na pele do rei do reinado fictício que se duplica no pelintra Rudolph Razz – à exemplo do que aconteceu com outra realeza esta semana, Wladimir, em Sui gradini del trono. Aqui, no entanto, o viés é cômico – tanto que, a partir do expediente da inversão cômica, a cópia é melhor que o original, que vive bêbado.
Também um romance erige a história. Todavia, a mocinha – a Princesa Minnie (Mae Laurel) – é desprezada pelo questionável monarca, o que dá ensejo a uma série de quiproquós que sustentam um humor de pastelão por 20 minutos, muito bem aproveitados por Sosin, o qual tira do piano impagáveis sons incidentais que ressaltam as síncopes do filme.
A parte principal do programa da noite foi esta obra-prima de comédia sueca, His Majesty the Barber. Como o filme anterior e porção das películas exibidas no programa presencial da Giornate, centra parte importante de sua ação numa cidade fantasiosa, curiosamente denominada “Tirania” – não por acaso, ali se dá um golpe de Estado que liquida a família real, mote que dá origem à história.
Mas não nos adiantemos. Principiemos por contemplar esses adoráveis personagens no verão sueco, tão esperado, já que o inverno é ali tão duro: os seus passeios de barco, as suas danças e cantorias à beira-mar.
A obra começa com fotogramas estáticos que delineiam a ação, deixando-nos na boca o gosto agridoce do passado irrecuperável – como tantos filmes, parte deste não resistiu à passagem do tempo. É o dia do retorno à cidade de Nickolo (Enrique Rivero, chileno que se torna galã na Suécia), que fora estudar fora. Espera-o o avô barbeiro André Gregory (Hans Junkermann), que nutre expectativas curiosamente excepcionais a respeito do neto.
Ele chega e, a contragosto do velho, decide assumir o negócio deste. Torna-se o chamariz da barbearia, que dali por diante passará a ser frequentada por todas as garotas do lugar, sobretudo por duas figuras contrapontísticas: a espevitada Karin (Maria Paudler) e a sua amiga Astrid Svensson (Brita Appelgren) – perfeitamente talhadas, uma e outra, para soubrette e estrela. Malgrado Sophie visite o salão diariamente, Nickolo se apaixonará por Astrid. Paixão recíproca, o espectador verá, embora a jovem lhe resista, pois está prometida para um nobre sensaborão e duas vezes mais velho que ela. A avó dela, a impagável Sophie Svensson (Karin Swanström), dona de uma fortuna imensa – construída às custas do sucesso de seu tônico capilar –, e de uma cabeleira idem, apenas deixa de ver com maus olhos a união quando André Gregory lhe confidencia que Nickolo é descendente da realeza.
Já a essa altura aporta na cidade um navio oriundo de Tirania, no qual o casal de velhos procurará embarcar os jovens para que Nickolo receba o título e, de quebra, faça com que a família de Karin ascenda à nobreza.
Esta reviravolta daria à obra laivos de conto de fada, não fosse ela falsa. A indústria do cinema, tão apegada a fórmulas de sucesso, também podia ser criativa à época. No navio, a senhora Svensson e o velho barbeiro descobrem, além Nickolo, quatro outros supostos herdeiros ao trono de Tirania. A luz para o mistério surge tão logo os supostos súditos do país são rendidos por Astrid e Nickolo – os quais inopinadamente os encontram enquanto se preparam para fugir, abdicando do trono. Ao fim e ao cabo, ele e os demais rapazes tratavam-se de crianças abandonadas que, durante o golpe que se abate sobre o reinado, são entregues por um dos comparsas, administrador do orfanado, a cinco homens crédulos, que dali por diante seriam coagidos a colaborar financeiramente nos esforços de retomada do poder.
Um termo caro à Giornate deste ano é “Ruritania”, denominação de um conjunto de reinos inventados pela cinematografia clássica, esse mundo de fantasia. O termo originalmente cunhava o país fictício situado na Europa central em que se desenrolaram romances como O Prisioneiro de Zenda (1894), estendendo-se, hoje, a todos os países do tipo. His Majesty the Barber é interessante porque toma a tópica para satirizá-la. No entanto, degradados, os personagens ganham em humanidade. Donald Sosin deixa aqui de lado os sons incidentais e mergulha nos principais gêneros musicais do período, os quais entremeia aos temas das personagens, conduzindo-os, ao mesmo tempo em que nos faz vislumbrar a ambiência sonora dos anos 20, sua delicadeza e seus faustos. A mais cálida obra da Giornate até agora.
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