segunda-feira, 10 de junho de 2024

O "Napoleão" de Abel Gance (1927): quando o cinema de vanguarda encontra o mito

Em 1927, quando as iniciativas em escala mais ampla e industrial voltadas ao cinema falado começavam a dar frutos, Abel Gance fez estrear o seu monumental filme silencioso Napoléon vu par Abel Gance, que ficaria mundialmente conhecido como Napoléon. 
O filme é monumental sob todos os aspectos. Vi-o pela primeira vez apenas recentemente, ao longo de alguns dias – a versão da obra restaurada pela bolonhesa Immagine Ritrovata tem uma duração pouco superior a 5 horas e meia, ao longo das quais o pesquisador da história do cinema certamente manterá a respiração suspensa. 
Trata-se de um filme extraordinário. Kevin Brownlow, um dos principais estudiosos do cinema silencioso e homem responsável por ressuscitar esta obra da poeira dos tempos, não diz sem razão que esta é a mais bela obra cinematográfica da história. 
Napoleão surpreende por vários motivos. Embora se estruture à maneira dos filmes seriados veiculados desde a década de 1910, cujos episódios eram exibidos semanal ou quinzenalmente, as quatro partes que o compreendem foram exibidas em sequência no momento de sua estreia, na Ópera de Paris, malgrado a sua longuíssima duração. 
Ademais, a obra não apresenta características comuns à narrativa folhetinesca apresentada à granel. Ao invés de os episódios provocarem a interrupção da ação em seu ponto culminante, como usualmente se dava nos filmes seriados, buscando-se provocar o interesse do público a retornar ao cinema para ver o episódio subsequente, em Napoleão cada parte funciona como um capítulo de um livro de história, apreendendo desde os primeiros anos do menino ao momento em que ele invade a Itália – a ação se interrompe antes de o líder do exército se tornar imperador porque, conta-se, faltou ao diretor a verba para dar continuidade à sua empreitada. 
A visada à história de Napoleão Bonaparte empreendida por Abel Gance tem laivos hagiográficos. Quem surge em cena não é a personagem histórica, mas o mito, que se anuncia de saída, na cena em que o menino da Córsega (Vladimir Roudenko) conduz o seu exército mirim em meio às montanhas de neve do pavilhão do internato onde vivia, patenteando-se ali a honra e a valentia que permeariam a sua existência. E, posteriormente, nos olhos enevoados do menino de oito anos que enxerga pela primeira vez a Ilha de Santa Helena – que viria a ser o seu túmulo –, durante uma aula de história, fica implícita a abnegação do homem que entrega a sua vida a uma causa. 
Napoleão espanta por unir o tradicionalismo no tratamento do tema e a modernidade de sua forma. A infância do menino probo que prenuncia os passos do homem, a desculpa revolucionária dada à invasão francesa aos países do entorno (afinal, Bonaparte apenas estaria sonhando ver o ideário de liberdade espalhado pelas demais monarquias absolutistas), o diapasão conservador a partir do qual a guerra é abordada – como se ela fosse um ato de heroísmo – são erigidos a partir de um conjunto absolutamente estonteante de enquadramentos e técnicas cinematográficas. 
Já a sequência inicial da primeira parte do filme dá a ver esta ambivalência. A cena em que o menino Napoleão conduz o seu exército à vitória é tomada por uma câmera que surpreende pela liberdade – que passeia pelos atores como se fosse feita de pluma. A ótima edição dupla de Napoleão comercializada pela Coleção Obras Primas do Cinema apresenta, como um dos extras, um documentário dirigido por Brownlow, segundo o qual certas técnicas foram inventadas especialmente para este filme. A isso soma-se a originalidade da montagem, que é dialética, antecipando (ou melhor dizendo, servindo de exemplo a) as reflexões de Eiseinstein a respeito do tema. A montagem não esconde os cortes, como fazia o cinema padrão, mas sim dá-lhes relevo. 
A câmera com que Abel Gance cria a hagiografia de Napoleão Bonaparte nunca é apenas descritiva. Ela busca fazer emergir a combustão social contemporânea ao homem, calcando-o na história. Quando criança, Napoleão, nascido em 1769, vivera sob os estertores do absolutismo. Sua juventude (a partir daí o personagem é interpretado por Albert Dieudonné) coincide com a Revolução, de que ele participou como soldado raso – fomentando-a e visionando os seus desdobramentos. Sua ascensão no exército corre em paralelo à ascensão do poderio francês, do qual, segundo o filme, ele é o arquiteto. 
Segundo esta leitura, é a câmera subjetiva que determina os enquadramentos do filme: os travellings, as panorâmicas, os primeiros planos denunciam a tensão presente. Uma tensão que desliza do futuro monarca ao seu séquito, e exemplo claro disso é a cena em que Josefina, já casada com Napoleão, descobre que ele é objeto de adoração da jovenzinha protegida dele, que vive com o casal: o plano de detalhes do altar bruxuleante que a menina erige ao seu adorado no quarto dela, o corte abrupto que flagra Josefina às costas dela, a descobri-lo, e a movimentação da câmera, a denunciar o desespero da menina, patenteiam a tensão ambiente. 
Dentre os enquadramentos originais propostos por Gance há mesmo uma panorâmica feita por três câmeras, que multiplicam o campo visual do espectador, sonhando o Cinemascope, e que discursivamente denotam a amplitude do olhar de Napoleão, que, da França, enxergava o mundo todo. 
Pelo requinte com que aborda a sétima arte, distendendo os seus limites, o Napoleão visto por Abel Gance é um banquete àqueles que se interessam pela arte. E os amantes do cinema silencioso muito devem a Kevin Brownlow, provavelmente o maior entusiasta deste filme, que por anos lutou para recuperá-lo. O documentário que aborda a obra de Gance, sobre o qual falei acima, foi rodado em 1968. Todavia, o interesse do estudioso nesta obra data ao menos de 20 anos antes – numa entrevista que David Robinson me concedeu em 2016, ele contou-me que um conhecido comum apresentou-o ao então jovenzinho, o qual amealhava rolos de Super-8 com trechos desta obra, os quais ele religiosamente assistia em seu quarto escuro, ao invés de aproveitar o verão londrino. 
Hoje o espectador pode assistir a uma versão excelente de Napoleão, restaurada pelo laboratório Immagine Ritrovata, que procura recuperar as suas cores originais – pois, além da escala de cinza, o cinema daqueles tempos também era feito de cores, graças a técnicas como o tingimento e a viragem – e escoimar a imagem dos sinais do tempo, a exemplo dos riscos ocasionados pelo desgaste da película. A versão recebe o igualmente irretocável acompanhamento musical de Carl Davis, monumental como ela, porém, sem abrir mão de alguns laivos de ironia. Talvez possamos considerar que também o filme navega nesta corrente. Porque na disrupção da linguagem cinematográfica que o estrutura se encontra, talvez, uma piscada de olhos questionadora à hagiografia que ele erige. 
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Rodrigo Vennino, meu querido amigo, amante como eu de cinema – e da história do cinema, muito obrigada por este presente!

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Topografia de um delírio – “O Gabinete do Dr. Caligari” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em Notas Musicais a 15 maio 2024. 

O filme silencioso de Robert Wiene foi acompanhado pela Orquestra do Theatro São Pedro. 

O Theatro São Pedro vem eventualmente retomando a sua vocação ao cinema – o espaço foi inaugurado em 1917 como um cineteatro – e exibindo filmes silenciosos com acompanhamento musical ao vivo. Viver esta experiência é visitar nostalgicamente as sessões de cinema do passado: entre fins de 1910 e a década de 1920, existia uma variedade de estabelecimentos como o São Pedro, servindo ao público tanto espetáculos teatrais quanto cinematográficos, à medida de suas necessidades, ou ambos os espetáculos, já que, eventualmente, uma curta cena teatral antecedia a exibição de um filme, muitas vezes recuperando a temática da película a ser exibida. 
A experiência não é apenas nostálgica, mas também pedagógica. Acompanhar um desses programas cuidadosamente organizados pelo São Pedro colabora para a compreensão de como se organizavam as sessões de cinema na época em que a música desempenhava um papel capital durante a exibição – na ausência do texto falado, cabia à música dar voz às personagens, daí os grandes investimentos feitos neste âmbito, fazendo com que as orquestras consumissem, neste recorte de tempo de que falamos, grande parte das verbas empregadas na manutenção dos cinemas. A presença de músicos ao vivo na sala de espetáculo explicita outra característica deste cinema cuja produção foi descontinuada há quase um século: o seu hibridismo, a convivência existente entre o material já pronto e aquele gerado no calor da hora, enfim, o seu caráter teatral, já que nenhum espetáculo era igual ao outro. 
A exibição de O Gabinete do Dr. Caligari pelo Theatro São Pedro tem, além disso, uma função histórica inegável, entrando no escopo de esforços realizados a partir de, sobretudo, os anos de 1980, no intuito de se recuperar a espectatorialidade do cinema silencioso. Desta época em diante, além da contratação de compositores para a escrita de acompanhamento orquestral para filmes específicos, pesquisas historiográficas passam a ser desenvolvidas visando a recuperação dos acompanhamentos originalmente escritos para os filmes. 
Em 1920, embora estúdios compusessem partituras para os seus filmes mais relevantes e as comercializassem juntamente deles, as salas de cinema tinham autonomia para decidir a natureza da música que apresentariam, o que levava em consideração, por exemplo, o número de integrantes da orquestra – não era incomum que certos cinemas abrissem mão das partituras disponíveis, deixando ao pianista o papel de improvisador da música que acompanharia determinado filme. 
Das Cabinet des Dr. Caligari é uma obra paradigmática da presença do expressionismo no cinema. É uma obra de vanguarda, que busca romper com o realismo do cinema comercial, fazendo-o não do ponto de vista da construção cinematográfica (ou seja, de enquadramentos ou cortes inusitados, que surpreendam o público), mas sim da cenografia. Deste modo, abre mão da profundidade de campo oriunda da arte renascentista, em prol de cenários pintados que dão destaque às sombras e à deformação. Ao invés da realidade construída pelo cinema clássico, que se quer um recorte objetivo da realidade do mundo, o cinema expressionista procura fazer emergir as almas torturadas dos seus personagens. Não casualmente, esta estética é empregada por Robert Wiene na Alemanha recém-saída da 1ª Grande Guerra, momento em que o hediondo emerge como realidade comezinha.
O Gabinete do Dr. Caligari é também tributário dos estudos de Freud sobre a alma humana, que seriam depois apropriados por artistas mais comerciais ou menos – mesmo Alfred Hitchcock, que se une a Salvador Dali, em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), para criar as sequências dos herméticos sonhos do protagonista, os quais, interpretados, desvendariam a autoria do assassinato de que ele era culpado. 
A obra de Wiene narra em flashback, a partir do ponto de vista de um jovem rapaz, a história de um suposto médico insano que exibe o sonâmbulo Cesare numa feira – o exibicionismo de indivíduos atípicos foi algo comum até os primeiros decênios do século XX. Para além da mera exibição, todavia, Caligari (Werner Krauss) instrumentalizava Cesare (Conrad Veidt) para que cometesse uma série de assassinatos nos locais por onde passava. 
A história acompanha o percurso de um jovem para provar às autoridades que o artista de feira era um criminoso. Cronologicamente apresentam-se ao público duas ações vis de Cesare: o assassinato do amigo deste rapaz e o sequestro da moça que ambos amavam. As investigações culminam na fuga de Caligari e na descoberta, pelo jovem, de que o homem usava o sonâmbulo para repetir os experimentos de um certo Caligari que vivera no século XVIII. As buscas levam o jovem ao hospital psiquiátrico do qual ele julgava que o criminoso era interno, ali descobrindo que Caligari se tratava, na verdade, de um médico. 
Ao fim e ao cabo, o homem desprovido de razão não era Caligari, mas sim o jovem que o investiga – o que o público descobre quando a câmera passa a assumir o ponto de vista do médico, que surge em cena sem os traços lúgubres com que fora pintado ao longo de todo o filme, traços que o jovem lhe atribuía. Assim, a cenografia do filme reproduz o olhar que o rapaz voltava ao mundo. O filme não é apenas ousado no que diz respeito à cenografia. Ele o é porque ludibria o espectador, fazendo-o aderir ao ponto de vista do jovem desprovido de razão, já que praticamente toda a história é contada por ele. 
A ação é acompanhada por uma música de cunho melodramático, que procura ressaltar a dramaticidade encenada e dar voz aos sentimentos das personagens. O som incidental também está presente – a exemplo, o soar da sineta com que Caligari convida o público a assistir ao seu espetáculo –, como acontece nos cânones desta música, que se espraia não só para as obras concertantes, mas também para a ópera e para o cinema, como se vê. A finalidade deste acompanhamento musical é realista, não havendo nele espaço para a ironia ou para uma leitura a contrapelo das imagens, que leve o público a questioná-las. 
De acordo com o release do espetáculo publicado no cultura.sp, o acompanhamento faz uso da música originalmente composta para o filme, de autoria de Giuseppe Becce, a qual soma música original do compositor e temas pré-existentes oriundos de Berlioz, Schumman e Wagner (música romântica, como se observa, grosso modo, no cinema desde meados da primeira década de 1900). 
O maestro Marcelo Falcão foi o responsável pelo arranjo da obra musical para a sua execução pela Orquestra do Theatro São Pedro. O resultado foi tão bem-sucedido quanto os melhores acompanhamentos musicais realizados para o cinema silencioso ao redor do mundo (a exemplo das Giornate del Cinema Muto de Pordenone, Itália). Como pesquisadora do tema que sou, só tenho a comemorar esforços como este realizado no Theatro São Pedro, no intuito de novamente dar voz às sombras silenciosas, levando-as ao encontro do público.

Jornada de expiação – “Suor Angelica” no Teatro Castro Mendes


Crítica publicada em Notas Musicais a 14 maio 2024.
A apresentação abriu a temporada 2024 da série “A Caminho do Interior”.
 
Suor Angelica (1918) 
Ópera em ato único 
Música: Giacomo Puccini (1858-1924) 
Libreto: Giovacchino Forzano (1883-1970) 
Teatro Castro Mendes (Campinas-SP), 09 de maio de 2024 
Direção musical: Cinthia Alireti 
Direção cênica: Caio Bichaff 
Cenografia: Luisa Almeida 
Suor Angelica: Mayra Terzian
La Zia Princessa: Nathalia Serrano 
Suor Genovieffa: Isabella Luchi 
Suor Osmina: Suzy Amaral 
La Badessa/La Zelatrice: Rafaela Duria 
Suor Dolcina/La Sorella Infirmiera: Alessandra Wingter 
Prima Sorella Cercatrice: Renata Fausto 
La Maestra delle Novizie/Seconda Sorella Cercatrice: Simone Luiz 
Una Novizia: Cintia Cunha 
Le Converse: Nathielle Rodrigues e Carolina Janson 
Piano, órgão e celesta: Fernando Carrera 
Orquestra Sinfônica da Unicamp 

Na quinta-feira, dia 09 de maio, o público campineiro pôde conferir a primeira de uma série de récitas de Suor Angelica (1918), ópera de Gicacomo Puccini, com libreto de Giovacchino Forzano que percorrerá o interior do estado de São Paulo dentro do projeto outrora denominado A caminho do interior, encabeçado pela Cia. Ópera São Paulo – que apresentou, nos últimos dois anos, respectivamente Paggliaci (música e libreto de Ruggero Leoncavallo, 1892) e Cavalleria Rusticana (música de Pietro Mascagni e libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, 1890). 
Essas obras têm como característica comum o fato de serem curtas. Embora isso não signifique que sejam musical e cenicamente fáceis, sua menor duração serve bem ao propósito do projeto, de montar um espetáculo de custo reduzido, permitindo não apenas que jovens cantores tenham espaço de atuação num gênero cujo mercado é ainda bastante restrito, mas também que plateias desacostumadas com espetáculos operísticos possam tomar contato com tais produções, ampliando os seus gostos artísticos. Esta Suor Angelica teve o seu elenco formado por participantes de diversas edições do Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, outra iniciativa importante da Cia. Ópera São Paulo por revelar talentos brasileiros e estrangeiros. 
Volto a repisar uma questão que já discuti ao resenhar O Barbeiro de Sevilha, montado pela Uniopera em abril deste ano: num momento em que artistas são surpreendidos com uma sequência de produções operísticas sendo canceladas de norte a sul do Brasil, é salutar ver um projeto como este ser viabilizado e encontrar o público, que é a razão de ser do teatro. Portanto, de antemão o projeto merece ser congratulado, sobretudo o responsável pela Cia. Ópera São Paulo e diretor geral e artístico deste espetáculo, o incansável Paulo Esper, mas também o Consolato Generale d’Italia em São Paulo e o Istituto Italiano di Cultura San Paolo, responsáveis pelo seu fomento. 
A obra em questão integra o Trittico, conjunto de três óperas em um ato de Puccini estreadas no Metropolitan de Nova York em 1918, e agora representadas muitas vezes separadamente – as demais são Il Tabarro e Gianni Schicchi, esta última uma obra-prima de comédia e a mais encenada das três. 
Suor Angelica se passa num convento nas imediações de Florença em fins do século XVII. O libreto aponta como indicação cênica a existência de uma igrejinha, do claustro e do cemitério. Trata-se, portanto, de um pequeno mundo que subsiste em si mesmo, do qual as internas não precisariam ou poderiam sair. Fabiana Crepaldi faz uma pormenorizada apresentação do enredo em texto que antecede a primeira exibição da ópera, cuja leitura recomendo. Limito-me aqui a trazer os elementos do enredo que colaborem para a leitura que faço da encenação objetivo desta resenha. 
A encenação reduz os elementos cênicos a um painel de Luisa Almeida que ocupa todo o palco ao fundo, representando a arcádia do convento, a partir da qual se advinha o seu interior. No primeiro plano, à esquerda, há a base de uma fonte, e ao fundo, uma escultura de uma mulher assemelhada a uma ninfa, que as internas associam à Virgem Maria – nada mais cabível, dado que o Renascimento italiano, que teve em Florença um dos seus principais palcos, apoiou-se na estética oriunda da Grécia antiga para esculpir estátuas cristãs. Esta imagem será, na porção final do espetáculo, colocada em perpendicular, fazendo com que o espectador divise a criança que está agarrada à ninfa, anunciando-se o vínculo entre Angelica e o filho. 

Mayra Terzian na cena final de Suor Angelica 

A ação se dá na porção esquerda da cena, dado que o restante do palco é ocupado pela orquestra – a exemplo de tantos teatros do interior, o Castro Mendes não tem fosso. Se isso obriga os músicos a dividirem espaço com a cena, limitando-a, dá ao todo uma grande intimidade, além de desvelar ao público o funcionamento da orquestra, noutras palavras, a magia que faz o espetáculo acontecer. Este posicionamento pode prejudicar o elenco, que terá mais dificuldade de enxergar as indicações de entrada dadas pela regente. Isso, felizmente, não se deu na première de Suor Angelica, cantada por um elenco de onze solistas que primaram pela homogeneidade, com alguns destaques. 
No grupo estão postulantes, noviças, irmãs e a abadessa, uma hierarquia religiosa que ocupa das candidatas ao claustro às que se preparam para assumir a identidade de “irmãs” – quando, enfim, adentram efetivamente este mundo, professando votos de pobreza, castidade e obediência. Há entre elas uma melancólica sintonia, denotada desde os suspiros da irmã Genovieffa, cujo singelo desejo é encontrar um filhote de cordeiro e tocar-lhe o focinho frio, até o mal disfarçado sofrimento da irmã Angelica, ante a ausência de contato com a família. 
A música do espetáculo, executada com competência pela Orquestra Sinfônica da Unicamp, sob a regência de Cinthia Alireti, é melodramática, de cunho ilustrativo: os sinos a marcarem os tempos lentos e a solidão, os trêmulos da orquestra fazendo emergir os descompassos dos corações. A visita inesperada da tia elucida ao público os motivos que levam Angelica ao claustro: ela vivera uma paixão escusa e tivera um filho, do qual foi afastada logo após o parto, sete anos antes, após o que é obrigada a se internar naquele convento. As indicações cênicas do libreto da ópera matizam as reações da tia, a testamenteira de Angelica, que procura disfarçar a piedade que tem pela sobrinha, a quem visita com o fim prático de fazer a disposição da herança devido ao casamento da irmã da jovem. A encenação de Caio Bichaff procura criar uma tia puramente calculista, mesmo no momento em que narra a morte do filho de Angelica, apesar de ressaltar todos os cuidados dispensados ao menino ao longo da sua doença. 
Suor Angelica não conseguirá sobreviver à notícia. Conhecedora dos benefícios e malefícios de toda a sorte de ervas, caberá a ela preparar a poção que acabará com a sua vida e, assim, com o seu sofrimento. Ao ato se sucede a tomada de consciência de que o cristianismo fecha as portas do paraíso aos suicidas, o que a impediria de encontrar o filho. A contrição de Angelica fará, no entanto, com que os céus a perdoem. O libreto aponta como indicação cênica uma mutação: o céu escuro torna-se “resplandecente com luz mística”. Surge em cena a “Rainha do conforto” e, diante dela, uma criança loura vestida de branco, que abraçará a mãe moribunda. 
A encenação faz bom uso dos elementos mínimos dos quais dispõe, atingindo alguns resultados admiráveis. Nem todas as freiras vestem hábito, e isto aparentemente independe do seu grau no convento. Se tal escolha dá leveza à cena – Angelica, por exemplo, usa um belo vestido rosado que combina com a atmosfera primaveril –, confunde a leitura do público. Uma delas usa um traje típico de enfermeira, com touca, o que deixa o espaço com a aparência mais de sanatório que de convento. Dentre as jovens há uma que demonstra ter deficiências cognitivas, boa escolha da encenação, uma vez que esses espaços historicamente foram utilizados para a “desova” de mulheres que caminhavam na contracorrente de padrões, a exemplo das mães solteiras e das portadoras de deficiência mental. 

Elenco de Suor Angelica 

Há, no entanto, soluções menos bem-acabadas, que podem ser aprimoradas ao longo da turnê da companhia. Por exemplo, algumas cantoras e atrizes são mais econômicas que outras no uso de maquiagens. Outras usam mesmo esmaltes coloridos nas unhas, o que é incabível aos papéis que desempenham. 
Há, também, um problema de acabamento da encenação que começa na cena em que Angelica prepara o veneno, e perdura até o fim do espetáculo: as demais irmãs continuam no proscênio durante todo o ato, quando, segundo as indicações do libreto, deveriam estar entre o cemitério e a arcádia. Esta opção torna inverossímil a morte de Angelica, pois ela acaba ignorada pelas demais internas enquanto se contorce. 
Por fim, a ausência de efeitos de iluminação no espetáculo prejudicou o tableau final. Não fica claro ao público que um milagre aconteceu, uma vez que a parte dos anjos é entoada pelas irmãs do mesmo lugar onde elas desempenharam o restante da cena, sem que se estabeleça qualquer diferenciação entre umas e outros. É preciso um efeito mínimo de iluminação para que a mutação fique clara aos espectadores. Creio que a verossimilhança do quadro teria sido ressaltada se as demais irmãs se situassem ao fundo da cena durante toda a cena do suicídio e expiação de Angelica, ao invés de estarem junto dela, e dali entoassem o coro dos anjos. 
Houve mais homogeneidade no que diz respeito ao âmbito vocal do espetáculo. Neste critério, trata-se do melhor espetáculo da Cia. Ópera São Paulo a que já assisti. Estamos diante de onze solistas profissionais, mesmo que algumas sejam bastante jovens. 
Destaquem-se Alessandra Wingter, egressa da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, que teve um belo desempenho no espetáculo de final de ano da Academia, em dezembro de 2023, ao lado de Bruno de Sá, e que, em Suor Angelica, desempenha dois pequenos papéis, o da Sorella Infermiera e o de Suor Dolcina; Rafaela Duria, prêmio Toriba Musical no Concurso Maria Callas de 2023, segura no papel de La Badessa; Isabella Luchi, soprano que neste ano se destacou como solista na Nona Sinfonia, de Beethoven, no Theatro Municipal de São Paulo, e, também, como vencedora do segundo prêmio feminino no Concurso Maria Callas, encantadora no papel de Suor Genovieffa, pelo brilho do seu timbre e pela delicadeza com que abordou o papel da irmã que, naquele mundo de abnegação, ainda insiste em ter sonhos; e sobretudo Mayra Terzian e Nathalia Serrano, nos papéis de Suor Angelica e da Zia Principessa. 
Serrano, que já frequenta os palcos paulistanos em papéis comprimários e solistas, tem um belo e promissor timbre, e cenicamente esteve bastante bem no papel de uma mulher decênios mais velha que ela – a tia que dará a Angelica a má-nova concernente ao seu filho. O embate de ambas teve força dramática, e imagino que crescerá ao longo da temporada. 
Já Mayra Terzian, a Mamma Lucia da Cavalleria Rusticana encenada pela Cia. Ópera São Paulo no ano passado, demonstrou grande amadurecimento, arrebatando o público como a irmã primeiramente contida e, enfim, sanguínea, ao procurar a morte para ir ao encontro do filho. Além de ter estado segura vocalmente, exibindo nos momentos mais dramáticos uma marcante voz pontuda, Terzian conseguiu criar uma curva dramática para a sua personagem, algo desusado mesmo entre artistas mais experientes. É uma cantora/atriz que merece ser observada com atenção. 

Nathalia Serrano (Zia Principessa) e Mayra Terzian (Suor Angelica) 

Após incursionar por cidades como Americana, Araras e Rio Claro, esta Suor Angelica chegará em São Paulo nos dias 25 e 26 de julho deste ano, seguindo carreira pelo interior até fins de agosto. Convido fortemente o público paulista a prestigiá-la! 

Consulte aqui a programação da série A Caminho do Interior

Foto principal: Victor Lessa/CIDDIC/Unicamp. Demais fotos fornecidas pela soprano Isabella Luchi.

terça-feira, 28 de maio de 2024

“O Barbeiro de Sevilha” em tons lúdicos


Crítica publicada em Notas Musicais a 24 abr. 2024. 

Il Barbiere di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha), 1816 
Ópera em dois atos 
Música: Gioachino Rossini (1792-1868) 
Libreto: Cesare Sterbini (1783-1831) 
Base do libreto: Le Barbier de Séville ou La Précaution Inutile, comédia de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799) 
Teatro Bradesco;  21 de abril de 2024 
Direção musical: Luciano Camargo 
Direção cênica: Rodolfo García Vázquez 
Cenografia: Priscila Soares 
Figurinos: Amanda Pilla B. 
Iluminação: Guilherme Bonfanti 
Elenco: 
Figaro: Sebastião Teixeira 
Rosina: Marcela Vidra 
Conde de Almaviva: Rafael Ribeiro 
Dr. Bartolo: Marcio Marangon 
Don Basilio: Flavio Borges 
Berta: Gabriela Bueno 
Fiorello: Ronaldo Mariconi 
Coral da Cidade de São Paulo 
Orquestra Acadêmica de São Paulo 

De 13 a 21 de abril de 2024, o Teatro Bradesco, situado no Shopping Bourbon (Pompeia, São Paulo), foi palco das peripécias do impagável barbeiro de Gioachino Rossini. A ópera-bufa em dois atos Il Barbiere di Siviglia (1816) veio a lume quando o seu compositor não tinha ainda 25 anos. Era jovem, no entanto, prolífico. O Barbeiro de Sevilha foi composto após mais de uma dezena de produções, entre elas Il Signor Bruschino e L’Italiana in Algeri (ambas de 1813). 
Tratava-se, portanto, de obra de um artista já experimentado. O libreto de Cesare Sterbini toma como base a comédia Le Barbier de Séville, do dramaturgo francês Pierre Beaumarchais, oriunda de uma trilogia de textos impagáveis que, compostos nos estertores do regime absolutista francês, já pressentem a aragem da Revolução, daí o protagonismo atribuído ao faz-tudo Figaro, que no século XIX se transformaria em metonímia de barbeiro, tão indissoluvelmente ligados ficaram o personagem e a profissão. 
Na ária em que se apresenta ao público, uma das mais célebres do repertório operístico de todos os tempos, Figaro afirma comandar lâminas e pentes, tesouras e lancetas, barbas e perucas. Ao longo da história, coube ainda aos indivíduos atuantes nesta profissão realizar afazeres variados, como a extração de dentes e a aplicação de sanguessugas, e Leonardo de Miranda Pereira – em A Cidade que Dança: Clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933), publicado pela Editora da Unicamp em 2021 – destaca a relação que os barbeiros estabeleceram historicamente com ofícios artísticos, como a execução de instrumentos musicais e o canto. Assim, nada mais cabível que o barbeiro de Beaumarchais se transformasse em personagem operístico, o que ocorre não apenas por meio da pena de Rossini, mas também da de Mozart, um par de décadas antes, com a ópera-bufa em quatro atos Le Nozze di Figaro (1786), com libreto de Lorenzo da Ponte. 

Cena da ópera
A ópera concentra-se nos ardis inventados por Figaro para que a jovem Rosina se case com o seu amado, o Conde Almaviva. O Conde apresenta-se à jovem como Lindoro, um pobre rapaz. Ela, no entanto, tem como tutor o Dr. Bartolo, um homem já vivido que pretende, com a ajuda do professor de música da menina, desposá-la por interesse. Para conseguir acessar a residência da mulher que ama, Almaviva (ou Lindoro) precisará da ajuda do barbeiro, que presta serviços à família. O primeiro ato gira em torno dos esforços do apaixonado para entrar na casa de Rosina. Nos moldes da comédia farsesca e da ópera-bufa, será usado o expediente do travestimento. 
Fingindo-se de soldado bêbado, o já fingidor Lindoro (que não se declara um nobre enquanto não tem certeza dos sentimentos da sua amada) requesta com sucesso o amor da mocinha, apesar dos planos arquitetados pelo tutor e pelo professor de música visando atrapalhar o casal. Ao final do ato, Dr. Bartolo denuncia o falso soldado ao batalhão. O Conde Almaviva consegue, no entanto, revelar secretamente a sua identidade ao oficial e escapa. No decurso do segundo ato, observamos um novo esforço de aproximação do Conde, que desta vez se disfarça de professor de música. Novamente junto da amada, e depois de ter confessado a sua verdadeira identidade, ambos combinam de se casar – o que fazem às barbas do Dr. Bartolo, na mesma casa em que ele mantinha Rosina cativa. 
A artesania com que os inúmeros quiproquós são tecidos e, enfim, costurados numa sequência de árias inesquecíveis fazem desta uma obra-prima de ópera-bufa. Célebre desde que foi composta – apenas no Brasil há menções a apresentações de suas árias desde ao menos a década de 1830 (no carioca Jornal do Comércio de 1838 encontrei menção a uma apresentação da ária Cessa di più resistere, ocorrida no Circo Olympico da cidade em 16 de fevereiro de 1838, o que significa que a obra já era conhecida do público) –, O Barbeiro de Sevilha segue vivo no imaginário do público há mais de dois séculos. Justifica-se, portanto, que ela tenha sido escolhida pela Cia. Uniopera para ser encenada. 

Cena da ópera 

O grupo em questão é comandado pela batuta de Luciano Camargo, responsável pela direção musical e regência do espetáculo. Sob os auspícios da Uniopera, estão também o Coral da Cidade de São Paulo e a Orquestra Acadêmica de São Paulo. Este grupo está conseguindo viabilizar os seus espetáculos sem auxílio público, com renda oriunda das bilheterias (segundo Camargo, 100% desta montagem foi financiada deste modo). 
Num momento em que espetáculos operísticos estão sendo cancelados Brasil afora, muitos sob a justificativa de falta de apoio público, tal esforço precisa ser destacado. Sem obviamente demonizar o investimento público em cultura (que é fundamental por inúmeras razões, dentre as quais para permitir que obras mais disruptivas, que não necessariamente podem contar com o retorno financeiro das plateias, venham a lume), o atual contexto sociopolítico, que ao redor do mundo se encontra cada vez mais reacionário (e, portanto, inimigo da cultura), obriga-nos a pensar em estratégias que permitam que a arte brote em detrimento da aridez do solo. 
Do ponto de vista artístico, o Barbeiro que a Uniopera trouxe ao encontro do público teve destacáveis qualidades. A direção cênica de Rodolfo García Vázquez remete a animações infantis, a exemplo de Tainá e os Guardiões da Amazônia, um e outro repletos de tons pastéis rosas, azuis e verdes. No centro da cena, a casinha esboçada em cuja janela apareceu Rosina abre-se ao meio diante das vistas do público, no momento em que Lindoro conhecerá o seu interior. Com graça análoga, à medida da necessidade, descem do teto ou adentram o palco a cadeira do barbeiro ou a fachada da barbearia, bem como as portas que serão batidas pelos personagens, em seu constante entra e sai. 
Cena da ópera


O caráter lúdico da encenação resvala para os figurinos de Amanda Pilla B. e para os cenários de Ana Paula Costa. Os personagens desta montagem são brinquedos nos quais meninas de vestidinhos brancos dão cordas. O jogo de cena do espetáculo procura também remeter a este imaginário, dando ênfase a uma agilidade farsesca que condiz bem com o gênero do espetáculo. Se falta alguma agilidade no jogo de cena das meninas, na abertura do espetáculo, que parece um pouco pálido, na contracorrente da música de Rossini, ela sobra entre os solistas, que demonstraram sinergia, segurando o público ao longo das três horas de espetáculo. 
No dia 21, o papel-título coube a Sebastião Teixeira, e ele mostrou-se bastante à vontade na pele do barbeiro Figaro, sobretudo em suas trocas com Rafael Ribeiro, mais constantes. Este, por sua vez, foi um Conde Almaviva/Lindoro que equilibrou bom humor e doçura. Destaque-se a sua interpretação do dueto do falso professor de música (Pace e gioia sia con voi), que dividiu com Marcio Marangon, um hilário Dr. Bartolo. O viés farsesco resvalou ainda para Flávio Borges, o professor de música Don Basilio. Por fim, Marcela Vidra soube matizar em sua Rosina a paixão e o deboche, demonstrando quão contemporâneas podem ser as heroínas cômicas de Rossini. Destacou-se por sua musicalidade desde o momento em que a sua voz fez-se ouvir pela primeira vez, em Una voce poco fa, quando ela ainda está fora de cena. 
Para além da aplaudível iniciativa de montar um espetáculo operístico nadando na contracorrente da falta de incentivo público, a Uniopera ainda merece aplausos por num só tempo dar espaço para jovens cantores como Marcela e Rafael, e permitir o encontro com a ópera de um público de shopping, não acostumado a este gênero de produção. Que esses esforços sigam recebendo o seu fomento! 

Fotos: Andrea Camargo. 

“Carmina Burana” na Sala São Paulo


Crítica publicada em Notas Musicais a 16 fev. 2024.
Os concertos da pré-temporada da OSESP ocorreram de 8 a 10 de fevereiro de 2024. 

A Sala São Paulo começou os seus trabalhos de 2024 em grande estilo, com um concerto de pré-temporada em que figurou a célebre Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff, apresentada para plateias transbordantes, beneficiadas pelos preços populares da entrada (iniciativa fundamental para a democratização do acesso). 
A obra é invariavelmente precedida pelo ressaibo crítico, em grande medida justificável, já que foi escrita em pleno Terceiro Reich (1936), que arrastaria a Alemanha à 2ª Grande Guerra e protagonizaria o holocausto judaico, um dos maiores genocídios da história da humanidade. 
Na análise que fez da apresentação da obra ocorrida no Theatro Municipal de São Paulo em dezembro passado, Fabiana Crepaldi apontou o esforço da obra de caminhar a contrapelo daquilo que os nazistas consideravam arte “degenerada”, motivo pelo qual ela teria ganhado a aprovação do governo. Já no programa da Sala São Paulo, Márcio Seligmann-Silva, professor de literatura da Unicamp e crítico literário especialista em estudos do trauma – sobretudo concernente a este momento histórico –, sublinha a monotonia musical e temática presente na obra (repetição de poucas notas e frases, presença destacada da percussão, ausência de contraponto, presença de figuras míticas medievais) como denotativa de um programa estético voltado à distração. Ao transmitir símbolos de heroicidade numa linguagem musical acessível às massas, a obra de Orff acabaria por dialogar com o ideário político encabeçado por Adolph Hitler. 
Nas décadas seguintes à guerra, Carmina Burana imprime-se indelevelmente no imaginário ocidental, apresentada – especialmente O Fortuna, Imperatrix Mundi, canção que abre e fecha a cantata – num sem número de produções, de filmes a comerciais de televisão. Passados quase 100 anos e alterado o contexto histórico, o maravilhamento que a peça ainda causa – e causou extensivamente no público presente na Sala São Paulo – comprova que os sentidos da obra artística ultrapassam o seu contexto histórico. Polissêmica, a arte verdadeira incorpora sentidos à medida que percorre tempos, espaços, e perscruta os indivíduos. 
Carmina Burana traduz-se por “Canções de Beuern”, e faz alusão a um conjunto de cerca de 250 textos e poemas encontrados num convento situado no município de Benediktbeuern, na Baviera, escritos entre os séculos XI e XIII. São textos escritos, sobretudo, em latim medieval, no entanto também em francês antigo, provençal e em latim macarrônico (que misturava o latim ao alemão e ao francês), acenando para a formação e o desenvolvimento das línguas nacionais, que neste período estavam se elevando a idiomas de cultura. 
No plano temático, há na obra a retomada de figuras míticas do medievo como, por exemplo, a “Branca Flor”, que a tradição – e Richard Wagner neste roldão – depois associaria à personagem de Isolda. A obra de Orff, portanto, faz uma recuperação histórica importante, e o fato de acenar às massas tanto quanto à alta cultura não é motivo de demérito, senão da sagacidade do compositor de perceber a ascensão da cultura de massas naquele momento histórico. 
Embora a arrepiante O Fortuna, Imperatrix Mundi explicite de forma trágica o papel do destino de elevar e destruir reputações ao seu bel prazer, tornando inconstantes a sorte e a felicidade, a obra Carmina Burana é composta por canções de amor e por poemas em grande medida cômicos e eróticos, que procuram flagrar a dimensão cíclica da vida e a primavera (e os seus apelos sensuais) vencendo os rigores do inverno. 


A peça demanda coros numerosos, cujos papéis são preponderantes. Na Sala São Paulo, a obra foi desempenhada pelo Coro da OSESP e pelos Coros Acadêmico e Infantil da instituição, em ótima forma, preparados, respectivamente, por William Coelho, Marcos Thadeu e Erika Muniz. Há, além disso, três vozes protagonistas, interpretadas pela soprano Gabriella Pace, pelo tenor Jabez Lima e pelo baixo-barítono Licio Bruno. A batuta foi empunhada com excelência pelo regente Hilo Carriel, que extraiu da OSESP e dos demais intervenientes um grande equilíbrio musical e dramático. 
Dentre os solistas, há na obra uma presença preponderante do baixo-barítono, associado invariavelmente a um desses monges retratados nesses poemas: monges vagabundos voltados mais aos prazeres da carne que à elevação espiritual. Artista de grande e sólida experiência, Licio Bruno desincumbiu-se com segurança do papel, ressaltando o seu caráter satírico, dramático e passional – mais que uma soma aleatória de canções, há uma curva dramática na obra que Bruno conseguiu ressaltar. 
Ao tenor Jabez Lima cabe uma das árias mais difíceis do repertório concertante de todos os tempos. Lima faz emergir o caráter profundamente imagético da canção denominada Olim lacus colueram (“Outrora morei num lago”, segundo a tradução presente no programa), que apresenta os lamentos de um outrora belo cisne que se vê sendo assado e prestes a ser devorado por dentes assassinos. 
Passados os descalabros e périplos dos monges errantes e os rigores do inverno, a soprano traz um sopro de brisa primaveril. Cantora com mais de duas décadas de experiência, Gabriella Pace se entrega à jovenzinha que acaba de descobrir o amor – e o faz de forma magnética, seja do ponto de vista da técnica vocal, fazendo emergir os agudos e os pianíssimos da partitura, seja cenicamente, sozinha ou interagindo com os colegas (destaque-se sobretudo a sua generosidade quando ela interage com o coro infantil). Sem as amarras da partitura, Pace mostra que os liames entre as apresentações concertantes e operísticas são menores do que imaginamos. 
Carmina Burana transborda os seus tempo e espaço históricos. A grande qualidade do conjunto que a apresentou na Sala São Paulo explicitam que ela é arte maior, para além do nefasto contexto sócio-político em que emergiu. Fotos: redes sociais da OSESP.

Isolda/Tristão: releitura da tradição à luz das diásporas contemporâneas


Crítica publicada em
Notas Musicais a 3 out. 2023. 

Isolda/Tristão (2023) 
Ópera em ato único 
Música: Clarice Assad 
Libreto: Marcia Zanelatto 
Theatro Municipal de São Paulo, 15 a 23 de setembro de 2023 
Direção musical: Alessandro Sangiorgi 
Direção cênica: Guilherme Leme Garcia 
Direção de arte e videodesign: Rogério Velloso 
Cenografia: Mira Andrade 
Figurino: João Pimenta 
Luz: Aline Santini 
Visagismo: Luísa Galvão 
Coreografia: Renata Melo 
Regente do coral: Maíra Ferreira 
Isolda: Melina Peixoto, soprano 
Tristão: Daniel Umbelino, tenor 
Marcos: Sávio Sperandio, baixo 
Mãe: Luciana Bueno, mezzosoprano 
Orquestra Sinfônica Municipal 
Coral Paulistano 

Isolda/Tristão foi a primeira obra da dobradinha apresentada no Theatro Municipal de São Paulo de 15 a 23 de setembro (a segunda foi Ainadamar, de Osvaldo Golijov). A ópera de Clarice Assad, com libreto de Marcia Zanelatto, foi contratada pelo TMSP (a exemplo de Navalha na Carne, Homens de Papel e Café, no ano passado) num esforço relevante de se fazer subir à cena obras contemporâneas de autores nacionais. A sua estreia mundial, e o fato de ela encabeçar a double bill, tornou-a a obra destacada pela crítica especializada, que se debruçou com consistência sobre a sua temática e factura musical e teatral. Esta resenha surge tarde e tem por objetivo compor com essa discussão, ao invés de repisá-la. 
Discutiu-se sobre a surpresa da parcela incauta do público que adquiriu ingresso para a récita supondo que assistiria à célebre obra-prima wagneriana Tristão e Isolda – o que seria no mínimo insólito, considerando-se que a ópera de Wagner tem cerca de quatro horas de duração, o que inviabilizaria a sua apresentação em um programa duplo. O espanto desse grupo acentuou-se porque, a exemplo de Ainadamar, Isolda/Tristão recebe amplificação mecânica dos sons – inclusive na orquestra. 
O público que venceu a resistência e assistiu à dobradinha teve, no entanto, uma experiência bastante satisfatória, uma vez que as duas obras conversam no que diz respeito ao tema de fundo. Enquanto em Ainadamar está em voga a repressão da ditadura espanhola e os seus ecos latino-americanos, Isolda/Tristão procura obliterar o âmbito geográfico ao discutir as mais diversas formas de repressão, ocorridas em contextos variados. 
A referência a Tristão e Isolda permeia a obra, que procura, assim, inserir-se na tradição. Antes de os malfadados amantes serem eternizados pelo compositor alemão, frequentavam o imaginário ocidental, já burilados pelo cancioneiro medieval. A lenda atravessa séculos e países. Em 1895, por exemplo, Coelho Netto – escritor que os modernistas legaram ao ostracismo – junta-se ao notório compositor Leopoldo Miguez na concepção de Pelo Amor!, melodrama que bebe de todas essas influências que correram os séculos, desde as literárias às musicais: da balada medieval à música de Wagner. 
Ao palmilharem um terreno tão caro à tradição cultural ocidental, Assad e Zanelatto procuram oferecer a sua contribuição. Do ponto de vista temático, Isolda é uma jovem casada que deixa o marido mais velho que ela para salvar a mãe, presa em um campo de refugiados juntamente com o povo ao qual Isolda pertence. 
A obra tem início com um belo prelúdio que flagra a jovem (no corredor da plateia, acerto cênico de Guilherme Paes Leme, o diretor do espetáculo) a meio caminho do acampamento onde se encontra a mãe. As nacionalidades dela, da mãe, de seu marido ou de Tristão não são explicitadas. Este não-lugar tem como intuito, quem sabe, fazer a obra ascender à categoria de símbolo de toda uma geração de espoliados, corridos dos lugares onde nasceram por motivos variados, como guerras, perseguições políticas, religiosas, etc. – a expulsão dos armênios de Nargorno-Karabakh, dez dias atrás, e a dissolução deste território separatista demonstram a premência desse tema. Ao contrário do que ocorre na obra de Wagner, a viagem de Isolda não visa o casamento com Mark, realizado a seu contragosto. Personagem criada por duas mulheres contemporâneas, Isolda aqui é uma jovem bastante mais assertiva, daí a obra centrar-se nela, como o seu título já explicita. 
A exemplo de Isolda, Tristão deixa, aqui, de ser o cavaleiro andante que mata o noivo de Isolda e lhe envia a sua cabeça, apaixonando-se por ela quando esta trata os seus ferimentos oriundos da refeida contenda. Enquanto o Tristão wagneriano busca este exemplo de mulher para satisfazer o tio rei, unindo-os em um consórcio que seria vantajoso sobretudo para Isolda – o que denota a abnegação do herói –, o Tristão de Assad e Zanelatto é o argonauta sobrinho de Marcos que, a pedido do tio, atravessará uma perigosa rota em meio à zona de conflito para resgatar Isolda. 
Se Tristão a princípio apenas conhece Isolda de nome, enquanto singra os mares ele ouve “o chamado” da “voz que atravessa séculos”, “sereia justa” que o torna irremediavelmente apaixonado. O calcamento explícito na tradição faz com que o libreto deixe muita coisa sem explicação. Ainda assim, mesmo que se desconheça a lenda ou a obra de Wagner, o entrecho de Isolda/Tristão é claro: o casal se apaixona à primeira vista, somando ao enlace trazido pela tradição a pauta da luta pela liberdade. 
Da obra de Wagner as autoras depreendem especificamente o entrecho romântico. Enquanto Wagner busca a lenda imemorial para enformar suas preocupações metafísicas de intelectual leitor de Nietzsche, Isolda/Tristão abraça de bom grado os contornos do gênero fabulístico; quer-se uma obra de leitura mais direta, em que as preocupações sociais ocupam um invulgar primeiro plano. 
A história gira em torno da salvação da protagonista depois da morte de sua mãe, a líder do grupo desta pátria sem nome. A mãe morre por meio de um expediente obscuro – um raio feito de luz que a fulmina (o competente desenho de luz do espetáculo ficou a cargo de Aline Santini). Afogando-se, Isolda é salva pela mãe morta, a qual se transforma numa espécie de ondina, criatura marítima. A jovem reemerge para se encontrar, como num passe de mágica, nas terras de Marcos, das quais Tristão já havia sido expulso ao declarar o amor recíproco que nutria por Isolda. E é o canto dela que trará de volta Tristão, quando Marcos compreende que precisa abrir mão da jovem, liberando-a para que ela viva um sentimento em que o ideário político tem um papel fundamental. 

Cena final da ópera 

A obra abraça com gosto a utopia, reescrevendo a lenda com final feliz: é “a mesma lenda outra”, como diz o casal no desfecho. Ao cabo da obra, o casal, a mãe morta e o coro de refugiados clamam um “Abram as fronteiras” sociopoliticamente impossível na prática. Se a narrativa é linear e o entrecho comezinho, o texto de Isolda/Tristão propõe-se a voos linguísticos. Ao mesmo tempo em que se apoia em rimas pobres, flerta com a desconstrução: “ulisses invertido” (escrito em letra minúscula no libreto) pode se referir tanto ao argonauta grego esposo de Penélope, que participa da guerra contra os troianos e enfrenta um périplo para voltar para a casa, quanto ao personagem da obra homônima de James Joyce, cuja escritura é presidida pela invenção do ponto de vista da linguagem. Se o resultado por vezes é interessante (a exemplo da imagem construída em “mar, furioso céu, / que nunca foi nosso / não ouse mastigar de Isolda os ossos”, cantado por Marcos), às vezes ele resulta impreciso (“onda vaga”, se é uma construção criativa – já que “vaga” tem um amplo escopo de sentidos, também significando “onda” –, não define com justeza a densidade do deslocamento de água que engole Isolda) e noutras, rebarbativo (“oceano, pra quem séculos são anos”, por exemplo, gera um cacófato). 
Se falta amadurecimento à história do ponto de vista da construção poética, do ponto de vista musical ela alça voos largos. Oriunda de uma família de músicos, Clarice Assad construiu uma obra que se sustenta per se, sem a necessidade de texto ou encenação para se perfazer. Veja-se o seu grandioso prelúdio, que introduz com contundência o drama e os sopros líricos dos expatriados. Incumbiu-se do espetáculo a Orquestra Sinfônica Municipal, sob a regência de Alessandro Sangiorgi, e ela o fez com a mesma qualidade com que se apresentou em Ainadamar. 
Outro trunfo desta montagem é a cenografia de Mira Andrade, profundamente apoiada na iluminação e nas projeções, já que a cena do Theatro Municipal é praticamente despojada de elementos cênicos. A cena do encontro de Isolda e Tristão, no ambiente aquático que os inunda, é de grande beleza, assim como impressiona a projeção enorme e tridimensional do rosto da mãe da protagonista depois de morta. Há elementos de funcionalidade menos clara – a exemplo do sepulcro da mãe de Isolda, transformado em uma figura geométrica à la Lygia Pape. Mesmo assim, este espetáculo é um bom exemplo de que o abandono de uma encenação realista pode ter um resultado positivo caso acompanhado de inventividade. 

Luciana Bueno 

No que diz respeito ao figurino, em uma ópera como esta, que opta pelo não-lugar – ou pela mistura das temporalidades –, João Pimenta preferiu não calcá-los em um tempo ou espaço específico, vestindo o casal protagonista como dois guerreiros, a mãe e o rei com heráldica análoga e o coro de espoliados com trajes surrados que remetem às vestimentas dos refugiados que desfilam pelos telejornais. 
Sávio Sperandio 


Guilherme Paes Leme faz uma direção cênica precisa dos quatro personagens principais e do coro de refugiados (cantado com competência pelo Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira), optando por gestos econômicos. Ele extrai da mezzosoprano Luciana Bueno uma interpretação de grande qualidade cênica, e colabora para que Sávio Sperandio explicite ser não apenas um cantor superlativo, mas também um ator de elevado gabarito: seus pianos e a doçura com que ele sofre pela perda de Isolda, ao julgá-la morta, denotam que o grande cantor de ópera precisa também ser um grande ator). O jovem e já experiente tenor Daniel Umbelino, como Tristão, demonstrou profundidade crescente na compreensão de seu personagem ao longo das récitas. A jovem Melina Peixoto, que os palcos paulistanos acabam de conhecer, foi, como Isolda, uma bonita contraparte a Umbelino. 
Isolda/Tristão coaduna texto e encenação. Toda arte é fruto do seu tempo. É compreensível o esforço da cena operística contemporânea de modernizar obras pregressas impregnadas de sexismo, racismo, etc. A veste política, no entanto, cabe melhor às obras talhadas nas dimensões atuais. Daí a importância de esforços como o do Theatro Municipal de São Paulo, no sentido de empregar artistas contemporâneos para discorrerem sobre as dores que sofremos e os sonhos que nutrimos hoje.  

Fotos: Rafael Salvador / TMSP.

“Ainadamar”: poesia transcendental


Crítica publicada em Notas Musicais a 20 set. de 2023. 

Ainadamar (2003) 
Música: Osvaldo Golijov 
Libreto: David Henry Hwang 
Ópera em 3 atos. 
Theatro Municipal de São Paulo, 15 de setembro de 2023 
Direção musical: Alessandro Sangiorgi 
Direção cênica: Ronaldo Zero 
Cenografia: Nicolás Boni 
Figurino: Olintho Malaquias 
Iluminação: Wagner Antônio 
Visagismo: Tiça Camargo 
Coreografia: Fábio Rodriguez 
Margarita Xirgu: Marisú Pavón, soprano 
Nuria: Lina Mendes, soprano 
Lorca: Denise de Freitas, mezzosoprano 
Ruiz Alonso: Flavio Rodrigues, cantor de flamenco 
Niña 1: Raquel Paulin, soprano 
Niña 2: Monique Rodrigues, soprano 
José Tripaldi: Daniel Lee, barítono 
Toureiro: Miguel Geraldi, tenor 
Professor: Rubens Medina, tenor 
Mariana Pineda: Miranda Alfonso, bailarina 
Niño: Gabriel Avellar, ator 
Orquestra Sinfônica Municipal 
Coro Lírico Municipal 
Corpo de Baile 

Em 19 de agosto de 1936, albores da Guerra Civil Espanhola, Federico García Lorca é morto pela Falange franquista. Os motivos restam questionáveis: o fato de Lorca ser poeta de extrema popularidade e invulgar influência; a sua homossexualidade. O regime de Francisco Franco emerge quando a monarquia espanhola é substituída por um regime republicano de tendência socialista. O esforço progressista é rapidamente minado com o início da Guerra Civil Espanhola, que cobre o país com “uma torrente de sangue quente” – como profere Margarita Xirgu, a atriz-mártir de Ainadamar, ópera do argentino Osvaldo Golijov com libreto do norte-americano David Henry Hwang que o Theatro Municipal de São Paulo reencena de 16 a 23 de setembro de 2023, depois de estreá-la no Brasil na temporada de 2015. 
Chamá-la de obra-prima de ópera talvez seja falsear a realidade, uma vez que esta obra enlaça o gênero operístico ao teatro e, por receber amplificação mecânica do som, a espetáculos como o musical (sobretudo a vertente contemporânea, de ressaltado potencial crítico) e, como bem aponta o seu programa de sala, ao cabaré. E neste entrelugar ela consegue se realizar magistralmente. 
Ainadamar divide-se não em três atos, mas em três “imagens”. Imagens profundamente sentimentais, captadas pela objetiva da fantasia de Margarita Xirgu, musa de Lorca, instantes antes da morte da atriz. A obra resolve colocar em debate o lugar do próprio teatro, esse limite tênue que ele estabelece entre a ficção e a realidade – a ficção da cena (mesmo com laivos de realidade) e a realidade da plateia que assiste. Assim, Lorca, que perece na segunda imagem, surge redivivo na terceira, convidando Margarita Xirgu a atravessar com ele o limiar do reino dos mortos. Ao caminharem rumo ao fundo do palco, para fora da cena, ambos provocam o público a imaginar como seria este mundo, transformando os espectadores em personagens ativos da história. 
Os belos figurinos de Olintho Malaquias, em parte oriundos da primeira encenação paulistana da obra, remetem de forma realista aos momentos históricos nos quais a ação se passa. A imaginação, todavia, preside o espetáculo, que dá de ombros ao realismo. Ao fundo do palco nu, um tablado retangular horizontal oferece-se como um novo palco, espaço onde aparece Federico Lorca sempre que as retinas de Margarita Xirgu o convocam. Sobre este palco vertical, ilumina-os a enorme lua dos românticos. No centro dele, ora surge uma pequena mesa redonda de bar, e apoiado nela o poeta convida a atriz para desempenhar o papel-título na peça Mariana Pineda, que ele acabara de escrever; ora surge Luiz Alonso, representado por um cantor flamenco que, à guisa de coro trágico, clamará ao povo “Ai meu Deus! Entreguem-no! Acabem com isso!”; ora, enfim, monta-se a prisão que acolherá o poeta em seus instantes finais, onde ele, em vias de ser alvejado pela Falange, clama a Deus para que o perdoe. De cada lado do palco do Theatro Municipal, as fileiras portas rubras por onde entram os personagens são permeadas com imagens de manuscritos de Lorca. 
 A obra tem um ressaltado contorno político. Lorca intitula Margarita de “rainha proletária do teatro espanhol”. Ainadamar principia a colocar os dois em relação quando o poeta convida a atriz a representar Mariana Pineda, uma personagem de contornos reais, já que é baseada na personagem histórica de Mariana de Pineda Muñoz, jovem liberal morta em 1831 por se contrapor ao regime absolutista de Fernando VII. A divisa de Mariana torna-se também a de Margarita: “Liberdade, Igualdade, Lei”. A bandeira vermelha, amarela e roxa da Segunda República espanhola, que ocupa do teto ao chão do Theatro Municipal, ao fundo do palco, duplica-se naquela na qual Margarita Xirgu envolve-se e, depois, envolverá a jovem Nuria, sua aprendiz nos campos da Arte e da Política, deixando para ela o seu legado. 

A bandeira da Segunda República Espanhola 

A obra acena para pontos de inflexão da história. Quando Lorca dá o papel de Mariana a Margarita, em meados da década de 1920, Hitler já caminhava em passos largos rumo à transformação do nazismo na máquina de destruição em massa que se tornaria no início dos anos de 1940. Lorca perece em meados de 1930 devido ao fascismo franquista, simpatizante do nazismo. Mariana perece em 1969, poucos anos antes de a ditadura assumir o poder no Uruguai, para onde ela se mudara para fugir da repressão espanhola. Se não houvesse se entregado ao seu amado Lorca e à morte benfazeja, Margarita veria novamente, como vê em Ainadamar, que a República sonhada por ela era um sonho. Pouco depois de Golijov e Hwang realizarem esse sobrevoo na história da Europa e da América Latina (a obra é de 2003), a extrema-direita se alçaria ao poder no velho e no novo mundos, com os seus discursos de vieses fascistas, contrários às minorias sociais, à arte, à cultura, à vida. A luta pela defesa dos ideais que sustentam Mariana, Lorca e Margarita deve ser constante, tanto que, em Ainadamar, Nuria tem como missão passar os ensinamentos de Mariana ao coro de jovens que a circunda, e assim sucessivamente. 
Não obstante, o Lorca de Ainadamar dirá à passional militante Margarita Xirgu: “esta obra não é política”. O Lorca lembrado por Margarita é, a um só tempo, menino e homem: menino (o gracioso e talentoso Gabriel Avellar) que corre pelo palco do Theatro Municipal; homem que rememora apaixonadamente os encontros que tivera na infância com a estátua de Mariana Pineda, cujos lábios de pedra tornavam-se rubros e lhe davam beijos doces que o adormeciam todas as noites. 

Miranda Alfonso
Tanto o aspecto político quanto o lirismo presentes na obra emergem com força na encenação de Ronaldo Zero e nos cenários de Nicolás Boni. Mariana Pineda, personagem sem voz na ópera, é personificada no palco por uma dançarina de flamenco (a ótima Miranda Alfonso), que atravessa a ação com uma fúria apenas aplacada no momento em que ela abraça Lorca, já nos estertores da obra, pouco antes de os destinos de ambos se unirem. É uma escolha cênica acertada, pois faz emergir a força daquela mulher que fascinara o poeta ao longo de sua vida, e que, por conseguinte, fascina Margarita Xirgu. 
Embora o espaço do palco nu seja caro a esta encenação – já que o palco teatral é o ponto de partida de todas as histórias –, ele é atravessado por um conjunto de imagens de grande força visual criadas por jogos de luzes. Ainadamar, “a fonte das lágrimas”, assim denominada por ter sido o patíbulo de Lorca (transformado pela obra em uma espécie de Jesus Cristo, pois percorreu a sua via-crúcis em meio a dois homens, um professor e um toureiro), é uma projeção de flashes de luzes num fundo azul celeste, no qual se banha o coro das jovens. E Lorca será, ao fim da segunda imagem da obra, atravessado por balas feitas de luzes vindas do fundo do palco, que ultrapassam a cena e chegam à plateia, colocando em contato os espaços da ficção e da realidade. 

Ainadamar, a fonte das lágrimas 

O som da saraivada de balas é reproduzido eletronicamente, à maneira dos sons incidentais utilizados no teatro. Assim também o são os sons da água da fonte e dos cascos de cavalos que são emblemas da Falange. A obra tem um ressaltado tom de teatro político, recuperando os contornos do encontro entre Lorca e Mariana. Também é inserido eletronicamente um trecho de um hediondo discurso histórico proferido por oficiais falangistas em 1936 (informação que retirei do bom programa desta montagem): “Exterminaremos as sementes da revolução até dos úteros das mães…”. A sua música é tecida a partir de uma sonoridade que remete do flamenco à música judaica (o ótimo texto de Camila Fresca presente no programa do espetáculo recupera essas influências de forma detalhada). Essa heterogeneidade, que distancia a obra dos demais espetáculos do gênero operístico encenados na cidade, foi abordada com firmeza por Alessandro Sangiorgi, a quem coube a direção musical e a regência. A Orquestra Sinfônica Municipal respondeu-o com brio, realizando um trabalho de bastante consistência. 
A polifonia é entremeada pelos versos alusivos à morte de Mariana Pineda pelo regime de Fernando VII, escritos por Federico Lorca, que o coro de jovens canta ao longo do espetáculo, à maneira de estribilho, de forma cada vez mais lúgubre. Tal polifonia algo distante do gênero operístico e o uso de amplificação acústica fazem com que a parcela mais conservadora do público devoto do gênero torça o nariz para Ainadamar. Não sei se este texto será publicado a tempo de convencê-lo a não o fazer, e tampouco tenho pretensões a este respeito, mas é necessário que se ressalte a grande qualidade deste espetáculo interpretado (sobretudo) por mulheres bravas, que dominam os papéis que representam do ponto de vista vocal e cênico, prova enorme de respeito pelos âmbitos da música, do teatro e, porque não dizer, dos ideais que esta obra encampa, já que falamos de um elenco quase que totalmente feminino a decantar a liberdade e a igualdade em um mundo em que as mulheres ainda são preteridas em detrimento dos homens. 
Embora o papel de Lorca tenha sido escrito originalmente para uma mezzosoprano, ocasionalmente ele é desempenhado por contratenores. Apesar de o Theatro Municipal ter feito esta opção na encenação de 2015 (quando o cantou Luigi Schifano), desta vez respeitou-se a distribuição pensada originalmente para a obra. O papel de Lorca coube à excelente e experiente mezzo Denise de Freitas, quiçá a cantora lírica em atividade no Brasil que mais cantou en travesti. Já Margarita Xirgu foi interpretada pela soprano que lhe deu vida na primeira montagem da obra na cidade, que tem grande experiência neste papel e o canta com uma excelência análoga, Marisú Pavón. 
Entre o poeta e a sua musa está Nuria, a jovem que provoca as lembranças da atriz-professora, desempenhada, nesta montagem, pela soprano Lina Mendes. Atriz consolidada no teatro musical e de carreira ascendente no lírico, Lina desempenha uma Nuria cuja suavidade ao tratar com Margarita desdobra-se em firmeza no desfecho da obra, quando ela assume o legado da mestra. 

Lina Mendes, Marisú Pavón e Denise de Freitas 

Ao cabo da ópera, quando Lorca está prestes a levar Margarita consigo, o acerto da escolha de um trio feminino é ressaltado pelo grande lirismo e pela beleza com que as três timbram ao cantarem em uníssono. O desejo de liberdade preside a cena. Uma liberdade “ferida e sangrando esperança”, conforme diz Margarita nos estertores da obra, a ressaltar que a vitória apenas emerge da dor e da luta, e que a sua semente pode demorar gerações até germinar e dar frutos. 
Uma esperança que sangra. Se a encenação opta por poucos elementos cênicos, o libreto de Ainadamar (dos mais belos que a ópera contemporânea já pariu) tem uma imagética potente. É vermelho de sangue e de amor: dos lábios de Mariana, por quem se apaixonou o menino Lorca; do sangue que ele vê “correr pelas ruas”, em meio ao qual canta “coroado de espinhos”, à maneira de um Jesus Cristo tropical, no qual a religiosidade mistura-se à lascívia. 
Esta poesia que dá peso às ambiguidades, cuja força equipara-se à poética de Lorca, é compreendida de forma profunda pelas cantoras às quais cabem os papéis principais da ópera, Marisú Pavón e Denise de Freitas. 

Lina Mendes e Marisú Pavón
Pavón encorpa de forma dilacerante o papel da atriz cujas paixões pelo ofício, por Lorca e pelos ideais que ele encampa se misturam. A personagem de Margarita envereda por um carrossel de emoções, alternando abruptamente do drama mais lancinante ao humor agridoce. Para atravessá-lo, a obra demanda uma amplitude vocal que Marisú sustenta de forma segura. Sua qualidade vocal soma-se à dramática: cada verso que ela canta tem uma intenção bem pontuada. Vinda de narrar a Núria flashes dos horrores da Guerra Civil Espanhola, ela rememora, ao ser instada pela aluna, o primeiro encontro que tivera com Lorca. O clima se alterna bruscamente, e a Margarita dilacerada dá lugar à mulher ligeiramente embriagada e coquete que se entrega à sua arte, ao seu poeta – aliás, é preciso que se destaque aqui a química entre as intérpretes de ambos os papéis, cujas trocas são eletrizantes mesmo quando as duas estão em cantos opostos do palco. 
Denise de Freitas
Já Denise de Freitas cria um Lorca em que se misturam os arroubos líricos e a ironia cáustica. Depois de atravessar a cena como uma aragem fresca em meio ao mar de tristezas que Margarita evoca, e de dançar com ela enquanto evoca o sonho impossível de “abrir seu crânio ao sol” em meio aos anjos nus de Cuba (imagem potente, que alude à libertação violenta das amarras sociais e sexuais), Lorca diz peremptoriamente a Margarita: “Não vou”, “canto o canto dos que se calam, dos que morrem, fico aqui”. Denise de Freitas está entregue à personagem tanto do ponto de vista dramático quanto vocal. Se vocalmente realiza um trabalho impressionante, em que a sua conhecida potência serve um timbre grave como eu jamais tinha visto/ouvido anteriormente, cenicamente encarna Lorca com fúria e doçura, de passos firmes e olhos marejados. Artistas ocasionalmente têm a ventura e o carma de serem, como cavalos, médiuns cujas mentes são possuídas pelos espíritos dos mortos, tornando-se um canal entre aqueles que já partiram e este plano. Lorca revive em Denise. 
O elenco do espetáculo completa-se com um time sólido de comprimários. A Daniel Lee, que tem um admirável timbre de barítono, cabe o papel do padre que toma a última confissão de Lorca. Os companheiros de patíbulo do poeta são interpretados pelos tenores Miguel Geraldi e Rubens Medina. As duas “Niñas”, que encabeçam o coro das jovens aprendizes de Margarita, são interpretadas pelas sopranos Raquel Paulin e Monique Rodrigues, e ambas desempenham as suas partes com justeza vocal e entrega dramática, a exemplo das vozes femininas do Coro Lírico Municipal. 
Esta obra ao mesmo tempo dolorosa e bela é uma ode ao oficio do ator e ao espaço do teatro; espaço no qual se realiza esta arte que amamos, a ópera – mesmo este exemplar enviesado de ópera moderna, que, ao reescrever o gênero, inscreve-o nos corações de novos públicos. 
Ao ser representada sobretudo por mulheres admiráveis, Ainadamar recupera o histórico papel político do teatro, e ao entrelaçar o público à encenação, convida-o à ação. No fim do dilacerante Noite e Neblina, de Alain Resnais (1955), o narrador ressalta que é preciso rememorarem-se os horrores do holocausto para que algo do tipo nunca mais ocorra. “Quem de nós vigiará para advertir sobre a chegada de novos algozes?”, o documentário questiona. Ao sondar a historicidade de regimes de teor fascista, Ainadamar nos provoca, por meio de sua poesia transcendental, a agir, no plano da reflexão e da ação, contra a emergência deste mal que ainda nos ameaça – daí o acerto do Theatro Municipal de São Paulo de reencená-la. 

Fotos: Rafael Salvador/TMSP.