domingo, 3 de outubro de 2021

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia I


Dia 1: sábado, 2 de outubro de 2021

A COVID-19 continua deixando a sua marca na Giornate de Pordenone, que este ano acontece de forma híbrida. Ano passado, o sucesso do evento totalmente online levou a sua organização a investir novamente neste formato, realizando, paripassu, a sua versão mais ampla no formato presencial (o programa completo pode ser baixado aqui). Portanto, a 40ª edição retorna de forma celebrativa ao seu sítio costumeiro, efetivando um papel primordial que ela teve nos idos dos anos 80, quando passou a ser realizada na cidadezinha recentemente sacudida por uma intempérie da natureza, para elevar o moral de seus habitantes. 

A sua edição online rompe mais uma vez as fronteiras que desde o ano passado dificultavam o encontro físico. Ao longo desta semana de Giornate, este blog será reanimado pelo cinema muto, comentando os filmes exibidos diariamente em sua plataforma digital. Interessados, inscrevam-se no link a seguir, e organizem-se para assistir aos programas diários em até 24 horas do seu lançamento, após o que o seu acesso é impossibilitado: https://www.mymovies.it/ondemand/giornate-cinema-muto/. 


Jokeren (The Joker/Il Jolly/Na roleta da vida, Georg Jacoby, Dinamarca, 1928)

Os estertores do cinema mudo produziram algumas de suas maiores pérolas. “Jokeren”, obra exibida no primeiro dia do evento online, é exemplo disso. A cidade de Nice, na Riviera francesa, é ali uma de suas personagens primordiais. Em primeiro plano está o seu carnaval, celebérrimo até os anos que antecederam a segunda guerra, cujos desfiles são temática incontornável da cinematografia do princípio do século XX. 

É durante um acidente de carro ocorrido numa dessas paradas carnavalescas que morre o jovem Jonny, ainda fantasiado. Antes, todavia, ele clama pela presença de um advogado. Chega Miles Mander (Mr. Borwick), que tem apenas tempo de anotar os seus últimos desejos, os quais darão moção ao (melo)drama: o rapaz tivera no passado um caso com uma moça que acaraba se casando com um homem poderoso. No entanto, o rapaz abandonado conservara junto a si as suas cartas e fotografia, que desejava destruir. 

Porém, Miles é um escroque: sua compleição seca e o bigode escovinha talham-no fisicamente à personagem do vilão. Não bastasse, a abertura da obra apresenta, em seguida ao plano geral da cálida e repleta orla de Nice, o quarto desorganizado e sujo do advogado, verdadeiro covil, onde dormem ele e os convivas da festa passada. Descobrimos, ato contínuo, que o homem deve dinheiro a deus e ao mundo, devido ao seu vício no jogo. Ele encontra em Lady Powder (Renée Héribel), a dama em questão, uma mina de ouro. Descobrimos a jovem a seguir: a ampla vila que ela divide com o marido Herbert (Gabriel Gabrio, do maravilhoso “Les Misérables”, 1925), o pequeno filho e a irmã. 

O filme faz um bom uso do carnaval, que não funciona meramente como pano de fundo da ação – a morte cai como uma pedra sobre os foliões, e vemos pierrots, palhaços e toureiros de cabeças baixas e chapéus nas mãos; e é num chapéu, feito de jornal, que Lady Powel lerá sobre a morte do antigo namorado. 

O sofrimento da jovem se duplica com a perseguição de Miles, que abre mão de qualquer ética profissional para explorá-la. Com a ajuda de sua irmã Gill, ela procura reaver os documentos. A certa altura, seu marido teme a mácula do nome dele e a esposa permite que a irmã assuma a culpa pelo caso incauto e seja despejada de casa – vê-se que esse é um roteiro escrito por um homem (na verdade, dois, o diretor e Jens Locher). A maioria das mulheres têm ombridade para não permitir isso, especialmente quando o escroque decide que desejará como paga o casamento com Gill, e enceta consigo uma perseguição sexual que, hoje, serviria de gatilho para muitas vítimas de assédio. 

Não obstante, sabemos que a tempestade se segue à bonança no âmbito do melodrama. Para tanto, o “coringa” Mr. Carstairs (Henry Edwards) do título exerce papel fundamental. A sua fantasia carnavalesca é duplo de sua sorte no jogo e versatilidade social. Cabe a si, para além de virar o jogo na ação, matizá-la com alívios cômicos fundamentais ao gênero – por exemplo, o modo como ele subtrai as cartaz de Miles, no desfecho da ação, fazendo uso de um diretor cinematográfico e de uma forte luz de cena (o cinema aqui, como em tantas vezes, falando sobre si). 

A montagem ágil coopera para a boa urdidura da trama: por meio da montagem paralela, os dramas familiares são inseridos no cerne do torvelinho carnavalesco – carnaval que é depreendido da realidade, ressaltando-se aí o papel do filme também como documento sociológico. 
A obra é produzida pela célebre Nordisk, num de seus últimos rompantes antes da decadência – conta-nos Jay Weisseberg, presidente da Giornate, que o filme serve como propaganda da empresa antes de sua pretensa venda a uma companhia inglesa, fato que jamais se efetiva. Fica-me dele, no entanto, sobretudo o desespero com que Gill, pontuada pelo dramático acordeon de Stephen Horne, traça sobre o seu peito três cruzes, com as cinzas da rolha do champagne envenenado, para que Mr. Carstairs não beba do líquido mortífero e ela não seja violentada por Miles. Quase cem anos mais tarde, o filme ainda tem muito a nos dizer.